1.4.14

O dia em que as mentiras são folguedo

Nine Inch Nails, "Terrible Lie", in https://www.youtube.com/watch?v=-YNEH8csGwk
Acordaram todos sabendo que aquele dia consagrava a mentira. Ao menos uma vez no ano, a mentira não era paga vilipendiada. Folgavam da verdade contristada, pois era tempo de folguedo. Era para ir ao baú da imaginação e destravar a língua à mentira, sem esgares que denunciassem a patranha mal podada.
O problema é que toda a gente estava adestrada na mentira. Tanto mentiam que já não sabiam quando a verdade atapetava as suas palavras. A mentira genética apascentava o adulterar dos comportamentos. Todos desconfiavam que todos mentiam (uns aos outros). Às duas por três, mentiam à mentira para ludibriar quem com eles contracenava, se era caso de acharem ser rival que merecia desprezo. Por isso o dia das mentiras era um problema que não conseguiam desatar. Houve anos em que fizeram de conta que o primeiro de abril não estava dedicado à patranha sem consequências. Mas a patranha não podia ser inconsequente. Não conseguiam mentir ao calendário, contudo. Ainda tentaram, em numerosa comissão de dignitários, influenciar os mandantes para a celebração dionisíaca da mentira ser retirada das efemérides. Os governantes, mentirosos do pior jaez, prometeram que podiam ficar sossegados, que no ano que viesse a mentira deixava de ser festejada como se fosse aberração. Em homenagem aos seus pergaminhos de mentirosos relapsos, os mandantes esqueceram-se do ano que viesse.
Era o dia mais difícil do ano. Os mitómanos ferviam de raiva. Nos outros lugares onde havia delatores da mentira, gente que açambarcava uma hedionda moral, os mentirosos eram escarnecidos. Resolveram vingar-se da descortesia. Passaram a celebrar a mentira que os apoucava. Não quiseram ser diferentes dos que se impregnavam da alvura da verdade irremediável, como se fosse possível haver uma única alma que não tivesse os seus nacos de mentira. Doravante, encenavam as mentiras do seu particular dia das mentiras. Mentiam à mentira. Iam por dentro da mentira para contar outra mentira que desmentia a mentira que era ponto de partida. Recusando sempre que o contrário das mentiras que esfacelavam fosse a prometida verdade. E assim sucessivamente: escavando mentiras por dentro da mentira, em círculos concêntricos que aplanavam um surrealismo diletante. O dia das mentiras era o pináculo da criatividade.
Dizia-se que dele – dia das mentiras – procedia a inspiração dos argonautas da palavra.

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