31.3.14

Telhados de vidro

In http://vamosconstruir.com/wp-content/gallery/casa-com-telhado-de-vidro/casa-com-telhado-de-vidro-4.jpg
(Lição de anti-moral número sete, contagem aleatória)
Cuidado – advertem os cautelosos. Cuidado com os telhados de vidro que sobre nós se podem abater. Mal compreendem que as vidraças que encimam o teto podem começar por se esboroar por eles próprios, ou hão de julgar que há gente imaculada?
Eis a retórica do amedrontamento: é melhor guardarmos as invetivas para dentro, não vão sobrar destroços que nos amarguram a boca. Quem o adverte dá a entender que sabe de assuntos de que pouca gente travou conhecimento. Mantêm afilada a espada ameaçadora, que podem desembainhar se não nos dermos ao recato. Às vezes é o jogo do bluff. De outras vezes, é como se uma agência de serviços secretos esquadrinhasse os detalhes que pertencem à intimidade de cada um. Só pelo gozo de serem intrusos. Só pelo prazer de devassarem a vida alheia e encontrarem matéria apodrecida que se pode jogar contra quem a deixou apodrecer dentro de si.
Os telhados de vidro não importam. Não são eles a matéria pútrida. Ao menos os telhados que são de vidro exalam uma transparência. Pode não ser recomendável, mas quem é quem para julgar os outros? Podem os julgadores de telhados de vidro dizer que nidificam nesta transparência? O erro reside em quem esbraceja fantasmas que se alojam nos interstícios dos telhados de vidro. E não, a matéria bolorenta não são sequer esses fantasmas que assustam consciências que são por eles locupletadas; o bolor encontra-se nos famintos presbíteros da moralidade que nem percebem a vilania de esvoaçarem os podres de outrem.
Mas, assim como assim, qualquer moralidade é rançosa. Quer a que se enamora da vilipendiada exibição dos telhados de vidro que deixam os seus possuidores em carne viva. Quer a moralidade dos que depois reclamam defesa de honra, não se satisfazendo com a patente indecência dos que apontam para telhados de vidro e, ato contínuo, esboçam lições de contra moral que são um rosário diferente de entoar uma, outra, moralidade.
Se calhar, a moralidade devia ser banida do léxico.

28.3.14

O relógio que não dava horas

In http://images.fineartamerica.com/images-medium-large-5/timeless-left-side-of-antique-watch-face-with-no-hands-adam-long.jpg
O que queres de prenda?” A pergunta repetia-se todos os anos. Era uma fotografia do tempo reiterado, um caldo de monotonia que embaciava a luz diurna, como se por todo o tempo parecesse noite irremissível. “Não sei”, era a resposta também repetida, pois a mesmice não habitava só de um lado. “Surpreende-me”, vinha depois juntar-se à primeira parte da resposta.
Era um beijo envenenado. À míngua de criatividade, como podia pedir que fosse fautora de uma surpresa em forma de lembrança por ocasião de mais um aniversário? “Deviam banir este costume. As prendas deviam fluir ao sabor dos gestos espontâneos. As datas forjam esta inconsequência.” Não chegava para se se desembaraçar da função, todavia. Aquelas palavras eram um reconforto interior, selavam a árdua tarefa de dar cumprimento às convenções estabelecidas. Por mais que os dois se dissessem dissidentes das convenções, não queriam ser rebeldes julgados em tribunal alheio. Não adiantavam as lamentações em forma de elaborado raciocínio. Às duas por três, lá estava a furtada criatividade em esforço demorado para encontrar uma bússola que tivesse serventia.
Um dia, perante as arrelias que a impossível escolha afivelava, teve um lampejo de presciência: “oferece-me um relógio especial. Diferente. Um relógio que não dê horas.” Ao começo, não percebeu a demanda. Sentiu-se incomodada – o incómodo de quem não conseguia decifrar o sentido das palavras que pareciam linguagem em código. Não queria dar o braço a torcer e perguntar o que queria dizer com aquilo, pois se há coisa que os relojoeiros não vendem é relógios sem préstimo para a função para que foram inventados.
O silêncio que se pôs era uma medida angustiante. As palavras não podiam fazer o tirocínio da ausência, pois o silêncio já doía. Sem tirar os olhos do sol que desmaiava no fio do horizonte onde se fundia com o mar, atirou: “o relógio que não dá horas, podia ser a prenda que tanto te custa a imaginação a revelar. Podias ser tu a marcar no relógio a hora que seria sua matéria inerte. E eu trataria de perceber por que escolheste essa hora. Teria de ser uma hora singular, a singularidade vindo do instante que tivesses como especial. Eu diria as horas que são impassíveis. Como se o tempo ganhasse uma moldura intemporal. E nós fôssemos seus curadores, e por dentro dessa intemporalidade se autenticasse a perenidade do que somos.

27.3.14

Fábrica de meninos?

In http://amnprojeto.files.wordpress.com/2011/11/bebes1.jpg
O governo hasteou uma nova bandeira: há que procriar a toda a força. Como não andamos virados para fazer meninos, e como os geógrafos advertem que estamos a cair numa perigosa vertigem demográfica que pode ser uma catástrofe, a causa ganha popularidade. O síndrome de engenharia social está outra vez ao dobrar da esquina. Mesmo que esta intervenção (que ainda vai ser pensada) seja da autoria daquele que muitos iluminados certificam como o governo mais ultraliberal de que há memória, sem contudo cuidarem de explicar que os liberais não simpatizam com intervenções que congeminam a engenharia social.
Tenho curiosidade para saber da parição do governo. Como vai o governo (este ou o que vier depois) desfazer o hedonismo enraizado que nos faz ter pouca sensibilidade para sermos pais (ou para sermos pais mais do que uma vez). O incentivo à natalidade vai lá com subsídios generosos, ou regalias fiscais, ou a mensal entrega de um cabaz de géneros às famílias numerosas? Ou o governo presta-se a fazer a vontade à igreja, ilegalizando a venda de contracetivos? Os tutores do modismo da discriminação positiva são os primeiros a aplaudir as medidas que discriminam a favor de quem tiver multiplicar a prole. Continuo a achar que uma discriminação é uma discriminação, por mais que venha com a cosmética favorável da adjetivação consequente. Os que continuarem sem sensibilidade para aturar muitas criancinhas da sua lavra têm a discriminação (negativa) como fado traçado. Enquanto um governo (este ou o que vier) não se lembrar de multar os casais que não contribuem para a renovação da espécie, podemos continuar sossegados.
É comovente que haja gente que puxa dos galões da prole numerosa para, ato contínuo, ensinar aos demais, aos que não reproduziram tamanhas façanhas, que o devem fazer. Se não, é o futuro que está hipotecado. Dispenso o incómodo dos outros se arvorarem sacerdotes da boa moralidade, gastando o seu tempo para ensinarem as ovelhas tresmalhadas acerca do “bom caminho”.
Já faltou mais para as autoridades, com o beneplácito de uma sociedade mesquinha e ainda carente do paternalismo das autoridades, se meterem na cama de todos nós.

26.3.14

Aterragem de emergência

In http://rlv.zcache.com.pt/corvos_do_voo_floresta_olhos_deleveis_autocolante-rcad74d499c6246b3a7c7a6de2435206f_v9wxo_8byvr_512.jpg
Podia ser sobre os pássaros – agora que o tempo em desocupação deixava de molho o tempo morto para ser saciado como aprouvesse. Descobrira o agrado de ver os pássaros: de seguir a trajetória dos voos coreografados, de como ameaçam despenhar-se em piruetas escaldantes, ou de como sincronizam o voo quando voam em bando. Havia pássaros mortos no meio do jardim – por doença ou descuido, que um predador não perdoa quando os pássaros tropeçam na distração fatídica. Ou talvez fosse uma mal calculada aterragem de emergência e os parafusos desapertados atiravam a ave contra o solo, sem poder sobreviver.
Às vezes demorava-se na observação da passarada em socialização. Quase dera consigo a rivalizar com ornitólogos. Anotava os movimentos das asas, as danças experimentadas pelos pássaros em redor, quando andavam em bando e quando voavam em solidão. Anotara as espécies que conviviam no denso arvoredo do jardim. Percebeu a hierarquia das espécies: os corvos tinham prioridade na comida que aterrava no chão. As gaivotas julgavam-se imperatrizes, mas não conseguiam afugentar os corvos. Nem sempre os maiores fazem vingar a sua vontade.
Os corvos eram, em contrapartida, os mais desajeitados no voo. Pareciam trôpegos quando terçavam as asas no voo. Os corpos abanavam de um lado para o outro até conseguirem estabilizar no ar. Pareciam atemorizados pelas alturas. A melhor maneira dos pássaros mais pequenos ficarem em sossego era atamancar voo até às mais altas copas das árvores. Sabiam que não eram importunados pelos corvos, que capitulavam pela vertigem das alturas. E tão desajeitados eram os corvos, que vê-los apontar o voo ao solo era uma aflição. Era como se um avião viesse em avaria e tivesse de antecipar a aterragem, avisando o aeroporto mais próximo da aterragem de emergência. Alguns caiam no solo, ziguezagueando de um lado para o outro, mesmo no limite do precipício que era o estrépito da aterragem abortada.
Lembrava-se de alguns corvos desastrados a esborracharem-se no chão por inábil aterragem. Ele afinal há tanto garbo por aí instalado que se desfaz em nada à primeira aterragem forçada. A fauna era uma lição. A aterragem de emergência podia ser sobre os pássaros desajeitados. Ou também sobre outra coisa qualquer.

25.3.14

Os campos de flores

In http://www.novidadediaria.com.br/wp-content/gallery/imagens-de-flores-do-campo/imagens-de-flores-do-campo-9.jpg
- Podemos falar de flores sem usar o belo (ou palavras que dele derivam)?
- Podemos. Apalavramos as meadas e deixamos travão nas que não queremos.
- Sabes? Eu acho que todas as pessoas têm o seu campo de flores. Flores diferentes, em número diferente, com odores que traduzem a têmpera diferente. Flores como expressão da diferença que nos enriquece. As pessoas regressam sempre ao seu campo de flores. Gostam de as apreciar, campestres e singelas, ou as que ornamentam bouquets requintados.
- E porque dizes isso?
- É o nosso elemento terrestre. Ninguém se atreve a demorar em áridos lugares. Tanta aridez cativa a necessidade das flores.
- Mas pode ser apenas uma coincidência. Ou podem as pessoas que resgatam seus campos de flores fazê-lo por espontânea ordenança.
- Admite: há quem procure exílio num prado vicejante. Quem os procure até em dias tristonhos, com a resplandecência do sol locupletada pelas pesadas nuvens de chumbo. É como se estivessem a regressar às origens.
- Nem tudo procede das flores...
- ...Enganas-te. Até os pescadores se inebriam quando um punhado de flores convoca a atenção de uns olhos adestrados pela monotonia do mar sempre igual. Até os mais boçais não ficam a elas indiferentes.
- E o que fazem as pessoas em seus campos de flores?
- Bebem o perfume, extasiam-se com a quimera de cores que irradia das flores espalhadas pelo campo. Tiram fotografias visuais e resguardam as festivas flores num canto da memória. Mesmo a jeito de serem caução que resgata o corpo de um sobressalto imprevisto.
- Continuamos sem falar de beleza.
- Não é preciso. É inata quando orquestramos as palavras que adelgaçam a feitura das flores diante dos olhos.
- Gostavas de ter flores quotidianas?
- Não!
- Não te entendo.
- As flores não podem ser para todos os dias. Perderiam serventia. Seria banalizá-las. Elas não merecem a desfeita. Nem nós, pois apoucá-las na rotina será retirar o ouro que assenta em nosso regaço.
- Só servem as flores ocasionais.
- Ocasionais. Ou o retiro das arrelias da cidade. Um exílio que se impõe quando as arrelias desarmonizam. Por essa altura, convém inundar a casa com flores. Deitá-las numa aleatória configuração, espalhadas pela casa fora, sem critério. Até que, à noite, o leito em que repousamos seja uma cama de flores.
- Como se a cama de flores fosse sucedâneo do matricial campo de flores.
- Isso.

24.3.14

O paradoxo consequente

In http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/61/Flying_upside_down.jpg
A primavera envergonhou-se nos seus neófitos dias. Depois de uma primavera a destempo na senescência do inverno, pressagiando a primavera que não tardava, mal a primavera depôs o inverno logo aterrou a chuva e voltamos aos agasalhos da invernia, tamanho o frio que se pôs.
Ocorreu pensar sobre os paradoxos, os que julgamos que os são e aqueles que aparecem embotados por uma capa também ela paradoxal. Há paradoxos que de o serem assim tidos são um paradoxo paradoxal. Ou um paradoxo que se desmente através de mais cuidada observação. Ouvi pessoas a protestar contra a primavera que se envergonhou. A dizerem que não faz sentido, agora que veio a promissora estação e ela logo cuidou de testemunhar um tempo que é condição habitual do inverno. Admita-se que as pessoas estão extenuadas de um inverno como não acontecia há trinta e cinco anos (segundo os meteorologistas), de tão rigoroso que foi. É a condição atenuante para a desilusão com a primavera que ainda nem sequer é infante.
As duas estações do meio, aquelas que suavizam as estações excessivas, sempre possuíram ingredientes de cada uma das estações a que vêm abraçadas. Calor no outono e frio e chuva na primavera são o selo de alguma normalidade. O que é normal não pode ser um paradoxo. A primavera não é o contraste com o inverno deposto. Ele continua-se a insinuar em certos dias, que de primaveris só têm a data que vem no calendário. As mesmas pessoas que protestam contra uma primavera que não soube demitir de vez o inverno esquecem-se que o verão se infiltra, como se fosse um agente duplo, nas entranhas do outono. Poucos se apoquentam com o calor datado que se mete pelo outubro adentro; quase todos fazem loas ao mítico “verão de S. Martinho”, que admite temperaturas quase estivais nos contrafortes de novembro. Um paradoxo desta laia exige coerência de observação.
Se chuva e frio na primavera são um paradoxo, é porque são um paradoxo consequente. Ou um paradoxo que se desfaz à mais fria análise das coisas.

21.3.14

Amor recrutado

Três dedos de conversa. Três doses de ternura. Dois pares de olhos que se entrecruzam, olhando nas profundezas uns dos outros. As mãos que se amaciam. Uma recompensa que não arranja explicações. As palavras que repõem ânimo.
Tudo se embeleza. As janelas engalanam-se com flores jactantes. O chão vívido resplandece para os pés dos amantes. No dorso segue a matéria viva que desfralda as emoções. Tudo se resume a dois. Um mundo inteiro para dois, ou os dois que confecionam um mundo particular. Da maresia que se insinua recolhem em suas mãos o sal que vem atear a pele corada. Os corpos que se arrastam pelo areal são os mesmos que se entregam numa cumplicidade inata. Não há segredos. Não há palavras escondidas. Nem as há proibidas. No livro que se compõe, páginas fundeadas no ouro arrancado das entranhas perfumadas pelo amor singular. Tudo é beleza. Tudo se rende a uma estética de que os amantes são arquitetos lídimos. Cinzelam com estrofes suadas a alquimia que faz o quotidiano. As estrofes ensinam que o tempo vivente é o que interessa ser dissecado em todos os segundos contidos. Mas as estrofes também entoam preces que agarram o porvir sem cauções.
O odor das flores campestres conquista a casa onde repousam nos braços um do outro. Ao longe, uma melodia quimérica: as guitarras dedilhadas amparam os precipícios de antanho. Recrutado o amor, a estrada perdeu as sinuosas curvas. Agora é uma viagem serena, com tempo para apreciar cada instante da paisagem que se oferece. O tempo ganhou outra dimensão. Já não são apressados os olhares que pretendiam fintar o tempo. O tempo, agora, demora-se. Tem outro sabor. Adocicado pelo amor recrutado, debate-se em sua imorredoira condição. Outras vezes, é como se as mãos fortemente entrelaçadas conseguissem levitar o tempo, suspenso diante dos seus olhos, numa âncora estendida no teto.
Tudo se embeleza no triunfo do amor. O resto não importa.

20.3.14

Mão mole

In Público, 19.03.14
Os radicais de extrema-esquerda e os efabuladores de conspirativas teorias devem prestar atenção à fotografia que vinha na capa do Público de ontem. A chanceler e um primeiro-ministro dão um aperto de mão. Selaram um acordo. Emolduram, para memória futura, o acordo com uma fotografia significativa. Devem notar, os radicais de extrema-esquerda e os efabuladores de conspirativas teorias, nas mãos que se apertam. Se preciso for, soprem a poeira da lupa e esquadrinhem a fotografia. Nela vê-se a mão amolecida da todo-poderosa da Europa e a mão firme, que abocanha a feminina mão germânica, do primeiro-ministro.
Afinal, a mão de ferro exercida pela funesta Alemanha é um mito. Afinal, é um país latino, periférico e pouco recomendável, dependente da generosidade dos outros, que entrega a mão atlética em asfixiante aperto de mão. Os saudosistas do passado prenhe de glórias pátrias deviam pedir a uma litografia que imprimisse esta fotografia em tamanho gigante, para depois a encastrarem numa moldura de generosas dimensões. Ao contrário do afirmado com imperatividade pelos radicais de esquerda e pelos efabuladores de conspirativas teorias, o primeiro-ministro não foi de abalada até à Alemanha para prestar tributo à toda poderosa da Europa, nem apenas para as respeitosas genuflexões dos que se acham dependentes de alguém. Nem foi pedir conselhos. A todo-poderosa chanceler concorda com qualquer decisão tomada pelo governo de cá (sobre a saída, limpa ou protegida, da custódia da troika).
Aquele primeiro-ministro é que tem força. A mão da chanceler, a mão mole, não tem pulso para esta Europa, nem para um Portugal apequenado, periférico e irrelevante. Quem assim amolece não tem têmpera para mandar. É timorato. A chanceler deu àquele primeiro-ministro uma mão fraquejada. Este encheu-se de brios ao notar que podia tomar conta da mão germânica. Do resto, cuidou a circunstância e o retrato que dela se fez. Uma chanceler pouco sorridente, talvez por sentir que aquele primeiro-ministro usava a mão que apertava a sua como se uma forquilha fosse. E o dito primeiro-ministro em pose triunfal depois de saber que tinha carta branca, ufano na vitória sobre os radicais esquerdistas e os efabuladores de conspirativas teorias que tanto o apoucam. Tão ufano que quase esquartejava a mão da senhora.
Assim como assim, as fábulas contam que nós, impenitentes grunhos do sul da Europa, somos pouco propensos ao cavalheirismo. Não se aperta a mão de uma senhora como quem, embebido em ódio, quer apertar a jugular do arqui-inimigo.

19.3.14

Pertenças forçadas

In http://1.bp.blogspot.com/_C06ebMWnH04/S5J7jnvmS7I/AAAAAAAAAM4/o3anR1FUjKA/s320/camisa+de+força.jpg
1. Nasceu numa terra que não toma como sua. Dele dizem ser patrício daquela terra. Discorda. Jura que somos de onde nos apetece. Não estamos agrilhoados à terra onde nascemos, ou à terra onde tanto tempo vivemos. Os pés não se enraízam no solo que se diz filial. Não há pertença alguma assim ancorada. Os esteios não são da ordem física. Pertencem às emoções. Podemos pertencer a um lugar que nunca foi visitação.
2. A rapariga queria o namorado só para si. A monogamia era jogo dos dois. Dele não desconfiava (ou era o amor que embaciava a lucidez). Não punha as mãos no fogo pelas outras, doidivanas, que eram desassossego do sono. Podiam querer um pedaço do namorado. Para que o sono não continuasse locupletado por assombrações em forma de pesadelo, convenceu o namorado a anilhar-se no dedo direito. “É uma aliança de comprometido”. Ele anuiu. E ela sossegou-se. Era como as tatuagens a ferro em fogo no gado. Identificando um pertença. As raparigas outras já não o podiam acossar. A rapariga não desconfiava que a modernidade se regia por cânones que ela desconhecia. Há raparigas outras que cobiçam o alheio. A aliança de noivado era o apetite que ela queria evitar.
3. O rapaz nascera de pais católicos. Fora batizado. Fizera parte do percurso que as crianças fazem na educação católica. Quando cresceu e começou a pensar pela sua cabeça, renunciou aos dogmas e não conseguiu reconhecer deus em si. Diziam que era católica a sua pertença. A linhagem que vinha do tempo pretérito era disso sinal. Discordava, às vezes com veemência. Não entendia que escolhas dos outros o pudessem comprometer. Tornou-se amante das liberdades à custa da aferrolhada pertença religiosa. A fé não se herda – gritava no apogeu de discussões com quem lhe queria impor uma identidade de que se desidentificara.
4. O grupo cultivava cerimoniais próprios de seitas secretas. Os rituais exigiam linguagem codificada e traje a preceito. Partilhavam ideias e interesses. Fortificaram a coesão, fechando-se ao exterior e desconfiando do que estava fora das suas ameias. Ela começou a achar tudo patético: os cerimoniais e ritos, a linguagem cifrada, a inestética da indumentária, a desconfiança paranoica. Apostrofou a sua dissidência. Procuraram demovê-la. Invocaram o interesse do conjunto, que devia superar um qualquer interesse individual que viesse em contramão. Fizeram ameaças. Não se deixou intimidar. Aquela pertença forçada deixara de ser sua identidade. Fugiu para cidade longínqua, sem pré-aviso. Para se libertar das amarras da pertença forçada a que os confrades a queriam submeter.

18.3.14

Alma, que não te rendes

In http://chakracenter.files.wordpress.com/2013/08/opendoor.jpg
Não, não é valentia. Ou sequer demência, dizendo os outros que a empreitada está fadada ao malogro. Não é essência da têmpera, que o tempero da alma não carece de adjetivos pomposos nem de mapas descoloridos. Torpes, uns quantos, salivam matéria pútrida. Não interessa. Mas afinal interessa: é assobiar para o alto e dedicar às urdiduras a gélida indiferença.
É a alma que não se rende. Nem sequer aos silogismos da estratégia, dos que calculam os reptos, estimam o pulso dos ventos que sopram e decidem parar agora, se preciso for recuar duas posições e só avançar depois. Esses calculismos não pertencem à matéria genética da alma sem capitulações. Arranjam apoquentações. Era melhor não as arranjar. O corpo não tergiversa quando os sobressaltos que não domina arremetem com a sua fúria. Depois dói-se, o corpo. Mas a alma não se rende. Não se resigna, nem faz de conta que não é ultrajada, mas não afocinha na lama de quem ultraja. Não se rende, porque assume a indiferença.
As vozes que perderam açaime berram, tresloucadas, como guitarras distorcidas dedilhadas com furiosa acidez. Os olhares que reprovam, como se lhes fosse dado serem juízos do comportamento outro, dirigem censura eloquente. Acreditam que o olhar incisivo esmaga os diletos filhos da transgressão. É como se esquadrinhassem a parede de uma barragem em demanda de pequenas fissuras, só para esgravatarem por entre as fissuras e derrubarem a presa. Mas as entranhas do paredão estão sólidas, não há fissuras sequer milimétricas. Pois a alma que se não rende aprendeu a tecer sólido ancoradouro à prova de bala – de qualquer bala. A alma que não se rende tornou-se invulnerável, uma muralha férrea que não se enferruja. Aprendeu a ser humilde, na recusa das tresloucadas andanças que não sopesam os contratempos que o porvir monta nas costas distraídas dos desapossados da lucidez.
É a frugalidade do tempo que se cristaliza docemente. Calejada, a alma perdeu as ilusões destravadas que alimentam um módico de loucura juvenil. Calejada, temperou-se em sua frugal indiferença. Agora padece de um saudável ensimesmar. Ganhou tempo com o tempo que foi ido. Tornou-se mantimento de si mesma. E agora não se rende nem resvala para a extravagância tumular da teimosia. Dir-se-ia que nunca viu tão nítido.

17.3.14

A saga continua: os de esquerda é que são bons amantes

In http://images.fineartamerica.com/images-medium-large/5-rudolph-valentino-granger.jpg
Há anos, ficou célebre a prosa arrebatada de uma dirigente do Bloco de Esquerda sobre o superior desempenho sexual dos homens de esquerda. Não se soube de mais contributos para a sexologia (e para a ciência política) com tamanha lavra científica. Até que há dias um dos gurus da extrema-esquerda, Daniel Oliveira, voltou à vaca fria num programa de entretenimento televisivo.
Perguntavam-lhe se na juventude só colava cartazes, comparecia em manifestações de rua e militava na ortodoxia do que fora então seu partido, ou se também se dedicava às coisas mundanas dos jovens, nomeadamente se namoriscou. Como o Sr. Oliveira se descaiu, provocaram-no: e namorava camaradas de fileiras? Não se lembrava de o ter feito – as camaradas de fileiras eram apenas camaradas de fileiras, não convinha misturar águas. A provocação foi mais longe: e namoriscos com moças de direita? O Sr. Oliveira teve o descaimento total, depois de alguma hesitação: sim, fez algumas alianças bastardas com raparigas de direita. Rematando com um imperativo categórico: “coitadas, pois se entre os rapazes de direita só têm o que se sabe.” (Cito de memória)
O Sr. Oliveira não se devia meter nos lençóis alheios nem lançar rumores sobre o desempenho dos varões de direita (nem tão pouco escorregar em traiçoeiras generalizações). É que também os há diligentes, como haverá gente de esquerda que não se distingue na função. Os protótipos são apenas representações de imagens que não passam de isso mesmo. Nos homens de direita haverá o arquétipo do homem marialva, boçal como é genético da marialva condição, misógino sem o admitir, que amesquinha a mulher, coisificando-a amiúde. O brutamontes que se orgulha de dedicar à mulher a condição inferior que mostra o atavismo em que tais marialvas nidificam. Os maus amantes. Como há os que se notabilizam na função. Recusando o menosprezo da mulher. Sem caírem nos mesmos preconceitos dos varões acanhados que procuram suplantar os mal resolvidos problemas íntimos com uma sobranceira imagem que é só uma imagem. À direita, também há quem leia poesia e entoe poesia às musas suas. O romantismo não é exclusivo de ninguém – nem o romantismo lamechas, nem o romantismo esteticamente edificante. Também há homens de direita que oferecem flores, choram por mulheres, admitem o desamor (quando o desamor tem sua vez), detestam tourada e são amantes louvados. 
Era o que mais faltava: pergaminhos carnais dependentes das militâncias ideológicas. E era o que mais faltava: um absurdo concurso de competências libidinosas baseadas nas militâncias.

14.3.14

O homem sem medo das palavras

Dead Combo, "Esse olhar que era só teu", in http://www.youtube.com/watch?v=YpYD2PVI-_w
Incomodado com as palavras urdidas, fazia gala de delas soltar os freios. Por sua dignidade e por solene homenagem às palavras, que não merecem uma atadura em nome de peias que as sequestram e em nome daqueles que as não chegam a dizer.
As vontades cercam a destreza da palavra. Põem-lhe uma camisa de sete varas, sitiadas que ficam pelas delicadezas, pela funesta cortesia, pela diplomacia que coalha o livre arbítrio, pela escusa em magoar sensibilidades. Em tudo o seu contrário: rarefeitos os dedos acusatórios que avisam sobre a precatada palavra, desembestava-as. Corriam soltas, como se tivessem crina de cavalo em alegre correria pelo areal deserto, de um cavalo irrefreável.
Sabia que vinha acusado de desbragamento. Dele diziam ser um incorrigível incontinente da palavra. Metiam-no nas margens, pois rompia com a emaciação socializada e incomodava os bem pensantes que detestavam o pensamento de outro modo, ou o modo outro de usar palavras proibidas. Não capitulava. Cuidava de escolher as palavras que vestissem a polémica. Metia os pés ao caminho dos assuntos evitados. Preferia deitar-se no sossego do sono, sem mácula pela depreciação dos curadores da normalidade entronada; não era capaz de reprimir palavras à boca de cena. As palavras porventura não lhe perdoariam. Quem sabe se elas se podiam vingar, povoando nele o deserto das palavras. E ele que vivia da palavra como precisamos de oxigénio, não queria que o risco fosse fermento da insónia. Não era oportunismo. Uma têmpera de coragem interior afivelava o destemor das palavras. Só tinha uma proibição que respeitava: era proibido haver proibidas palavras.
Os dissabores, podia bem com eles. Pior ficava só de pensar que o podiam forçar à contenção verbal para não destravar a ira dos feitores da rotina convencionada. Não era mal que caucionasse ameaça. A provocação era militante. A palavra destravada também. Não havia lugar ao medo das palavras. Para não insultar as palavras que eram todas suas musas. As mais encantatórias, as anónimas, as inodoras, as rebeldes, as palavras sentidas, ou apenas as que adejavam sem sentido algum. Não podia, nem queria, existir sequestrado pela vedação onde ficavam impossíveis as palavras malditas. Pois todas eram para serem ditas.

13.3.14

Um striptease não é sem farda?

In http://zap.aeiou.pt/wp-content/uploads/2014/03/ad292e53dbe38c1c313462890f65336e-512x382.jpg
Que tempestade desembestada nas hostes da guarda nacional republicana! Descobriram que um seu elemento se exibiu, com farda a preceito, num striptease em Oliveira de Azeméis. O pobre rapaz já tem prometido processo disciplinar, que o topete de despir a farda para, ato contínuo, mostrar o corpo tratado em ginásio é ultraje à guarda.
Porventura o agente espevitado está à mingua de recursos. Que ninguém se esqueça que os funcionários públicos têm sido espoliados pela sanha de sacrifícios que os governos têm imposto. A necessidade de alternativas fontes de rendimento cresceu com o emagrecimento dos réditos que vêm na folha de pagamentos da guarda. Contudo, ninguém tem nada a ver com as despesas fixas do soldado da guarda que exibiu o corpo depois de o desnudar da farda que importunava a função. À míngua responde-se com estado de necessidade. Os superiores da guarda sentem-se ultrajados por uma exibição de striptease não se compadecer com o exibir e o depois despir da farda. Empertigados, protestam contra a aleivosia do subordinado: a farda é para ser respeitada, ou toda a guarda acaba mergulhada em pública chacota.
Os mandantes da guarda deviam aplicar comenda, e das mais elevadas, ao imaginativo rapaz que trouxe a farda para o espetáculo de striptease na periferia. Os superiores só protestam contra a exibição da farda antes de ser despida? Ou contra o despudor de um agente da guarda, entregue a lascívias exibições que – acharão no recato da sua consciência onde medra tão católico conservadorismo – não quadram com a pertença à guarda? Ao contrário, a guarda devia homenagear o agente do striptease. Onde já se viu um magote de moçoilas excitadas por verem uma farda da guarda? (É certo: a contorcer-se com lubricidade, antes da farda ser rejeitada do corpo e o porte atlético do agente despertar fantasias carnais no mulherio adjacente.)
Se varrêssemos os esqueletos que destilam a moralidade dos católicos de caserna, sempre ofendidos por saberem que se passam coisas – como dizer?, carnais – fora do seu radar visual, veríamos padres jovens, dotados de corpos torneados, a libertarem-se da sotaina para deixarem à mostra minimalista sunga escondendo as partes baixas da curiosidade das devotas excitadas.

12.3.14

As dívidas não se pagam? (Um contra manifesto)

In http://4.bp.blogspot.com/-fqAVrnd3A-E/UIf-vneV4eI/AAAAAAAAG9U/XrD1J4o0SSE/s400/ze_povinho_1232042214.jpg
Ilustres cidadãos, de heterogénea filiação de ideias, reuniram vontades e assinaram um manifesto que pede a renegociação da dívida que devemos. Renegociar a dívida pode significar coisas diferentes. Pode ser uma opção radical e deixamos de pagar o que devemos. Pode passar por um perdão parcial. Ou por um prazo mais alargado para liquidar a dívida. Ou, ainda, pedir aos credores que aceitem receber menos juros pelo crédito que nos concederam. Também pode significar uma moratória, o que não pinta boa solução, pois apenas adia um problema que existe agora.
Os notáveis (admire-se a carga de autoridade intelectual, uma certa gravitas que vem de braço dado com o rótulo) exigem que a Alemanha aceite rever a dívida que nos asfixia. Se não, pode acontecer que a renunciemos. Os credores só têm a ganhar em fazer a vontade ao devedor que tropeça em tantas dificuldades para pagar o que deve. Invocam, os notáveis, a história. De onde resgatam o perdão da dívida externa da Alemanha após a segunda guerra mundial. É pobre o exemplo. Pobre e desfasado do contexto. Porque a Alemanha, é verdade, tinha sido derrotada naquela guerra e talvez se pusesse a jeito das humilhações que pesam sobre os derrotados. Não foi o que aconteceu. Os vencedores, também credores da recuperação económica da Alemanha, tiveram a grandeza de perceber o cataclismo que a guerra tinha sido para os alemães. Quiseram dar uma segunda oportunidade. Perdoaram parte da dívida e baixaram os juros da outra parte. Comparar a aflição que passamos com o sobre-endividamento e a situação vivida pela Alemanha é ignorar a história, comparar o que não é comparável, e uma ilação que prima pelo mau gosto.
Atravessamos grandes dificuldades. Os notáveis argumentam que manter as responsabilidades da dívida prolonga uma austeridade sem sentido. Ao fazê-lo, passam a esponja pelos erros cometidos lá atrás, alijam as responsabilidades que não são dos credores. E enviam uma mensagem que levanta perplexidade: não podemos assumir as responsabilidades que vêm do passado; portanto, ou os credores renegoceiam a dívida, ou que tratem de esquecer os créditos sobre nós, que são incobráveis. Como se esta terra não fosse viciada em dívida e, em esquecendo unilateralmente a dívida que deve, jamais precisasse de se endividar. É um erro de diagnóstico dos notáveis. Não fazem pior mal à capacidade futura de endividamento junto dos credores externos. Parece que desconhecem a terra que é sua.
Ao proporem rever a dívida que se deve, os notáveis já estão a assustar os credores. Uns ingénuos garantem que os credores têm mais a perder do que nós, devedores, se os forçarmos a perdoar dívida. Assustados, hão de ceder perante a nossa vontade. Os notáveis ignoram que os credores não apreciam perder o dinheiro que nos emprestaram. Mas quem mais fica a perder somos nós, que tão cedo não voltamos a ver a cor do crédito de que precisamos. Fica a exemplar lição que os notáveis oferecem a quem os segue incondicionalmente: endividem-se, choraminguem e verão que não pagam tudo o que devem. Assim como assim, a culpa de estarmos endividados é – ao que parece – dos credores.

11.3.14

Dos frutos adoráveis

In http://download.ultradownloads.com.br/wallpaper/103836_Papel-de-Parede-Cesta-de-frutas--103836_1024x768.jpg
As árvores de fruto são como desenhos que retratam a insaciável demanda pela vida – dizias. Dizias que eras capaz de ter todos os frutos do mundo em teu regaço. E dizias que reproduzias com rigor os nomes dos frutos se te fossem dados a cheirar.
Podiam ser as romãs vivazes que entronizam o outono, com sua fina armadura de alvéolos, gritando a exasperante injustiça em que esbarram os olhos. As romãs saciam a sede de sentir, como as framboesas são sublimes santuários que enfeitam as coroas de flores por todos os lugares, esbulhando as mal paranças. Dizias que as maçãs são um pecado mal digerido e que os frutos se amanham com lugares-comuns que transitam de um legado que se descompõe em sua frivolidade.
Um banquete colorido, ou uma orgia de sabores que vem das divinas aposições nos frutos que desfilam no lugar onde os confrades amesendam. Provam os frutos, cerram os olhos em esgares de deleite, trocam palavras que emolduram as sensações devolvidas pelos frutos. Depois há quadros que furtam da essência dos frutos um naco do que são; não têm vencimento, porém, pois não passam de moldura aspirante de uma empreitada que vai além do tamanho que têm. As árvores de fruto são uma coreografia de êxtases. Quem nunca meteu os pés ao caminho por entre pomares ou vinhedos, guardando os aromas em redor, o forte aroma que nem precisa de proximidade dos frutos? Quem nunca colheu uma laranja sumarenta da ramagem vicejante, com a ramagem por testemunha do aceitável furto? Quem nunca fixou o olhar numa orquestra de frutos, coalhando o olhar no embevecimento da policromia estrelar?
Os frutos descem das árvores às nossas mãos – dizias – e somos sacerdotes do pomar de onde elas provêm. Oxalá o leito tivesse lençóis de fina seda frutícola e o chão do quarto fosse uma sinfonia com os aromas variados dos frutos entronizados. Para, à noitinha, o sono embalar nos doces acordes dedilhados pelos frutos dançantes. As alvoradas seriam perfumadas com a decantação dos sucos em que medrassem os frutos.

10.3.14

Divindades, só femininas

dEUS, "Eternal Woman", in http://www.youtube.com/watch?v=Horl9gLzs_c
(Dia internacional da mulher, dois dias de atraso)
Um ateu não acredita em deus. Podia repensar a dúvida metódica (convertida em certeza contrafactual: pois deus não se vê) se jurassem, com científica certeza categórica, que as divindades são as mulheres. Todas. As mulheres boas e as mulheres más. Novas e idosas. Sem olhar a credos e raças. Ou à estética nem à ética, ou às respetivas ausências.
Deusas são as mulheres, contra os escritores misóginos que trataram de as depreciar em páginas corridas que são confissão de impotência pessoal destes agiotas da masculinidade. São mães, amigas, companheiras, ou apenas mulheres que passam na rua na indiferença do bulício citadino. Geram-nos. Amamentam-nos. Acarinham-nos como mais ninguém o consegue, mercê dos laços filiais, comunhão de carne e sangue. São amigas. E companheiras, outra carnalidade, diferente. Nelas fervilha uma sensibilidade à parte. Uma intuição que desponta a inveja masculina. É falaz dizer-se que são o sexo fraco: a elas assiste uma força motriz que não tem par. São um oráculo onde se depositam os afetos. O seu riso aberto é uma janela que se abre, ampla, ao ar fresco guardado no exterior. A pele suave, desconhecida no sexo masculino, é convite ao desvelo. Os cuidados nos arranjos (que tropeçam na artificialidade se forem excessivos) não são caso de frivolidade; são expressão de uma sensibilidade inata que os homens admiram e, nem que seja por silêncios cúmplices, encorajam.
A mulher é um esteio onde se escora um homem. A casa sagrada onde se dividem segredos. Um ouvido lúcido e adestrado para os conselhos avisados em maré de tempestade. Portadora de uma fibra singular que adultera as convenções (afinal elas são o sexo forte). Os homens mantêm uma relação ambígua com as mulheres, sequestrados num mar de contradições. Invejam-nas e desdenham delas. Querem-nas em toda a sua volúpia e confessam que as coisificam amiúde, para logo a seguir sobre elas deitarem o opróbrio da complexidade inútil. Sem darem conta, prestam-lhes a maior homenagem: pois elas são armadoras de desejos, deixando que o reputado “sexo forte” se enrede em fragilidades irremediáveis. Só quem se vê imerso em sua imensa fraqueza é que ostenta, com boçalidade marialva, que é o sexo forte.
Essas proclamações, e aqueles varões que se embebem no convencimento da masculina superioridade, são a silenciosa demonstração de todo o seu contrário: fortes são as mulheres; e deusas, por tanto aturarem o pedantismo varonil, são também as mulheres.

7.3.14

Homem repleto

In http://parceriaadm.files.wordpress.com/2011/06/equilibrio.jpg
Debruçado sobre a varanda, por sua vez sobre o mar. Os pulmões enfartados pela maresia que ouve os outros a gabar. As estrelas que se insinuam entre o nevoeiro campestre são candeias fartas, archotes que ensinam a inteireza. Às vezes, as estrelas são açambarcadas pelo luar branco que alimenta as veias com uma doçura singular. Não interessa se mandam as estrelas, ou o luar, ou as nuvens que tomam conta do céu e o turvam. Como não interessam – não podem interessar – as palavras vãs que carregam em seus ombros a mesquinhez que apouca os seus autores.
Os olhos, na direção algures. De onde sopram os alísios gentios, de onde vejo passar os estorninhos no seu voejar estouvado, de onde cantam melopeias com feminina voz soprana. Algures, mas sempre por dentro de quem conta. Lá, nas profundezas onde se ensinam os olhares que no vazio não buscam refúgio. Onde o sangue ferve nas veias que são ancoradouro firme, onde se inventam os esteios desde finas ramificações de erva rala.
Um homem assim é um homem repleto. Cheio por dentro, extravasando a palavra cantante enquanto empunha o cálice com o vinho divino à espera da celebração merecida. Completo, este homem. Já não contam os vestígios, nem as cinzas que se empurravam contra a soleira da porta. Veio um vento refrigerante e varreu-as, diluídas na brisa estimada. O corpo não se intimidou com o refrigério; sabia, nas profundezas do ser, que num depois qualquer a bonança cultivaria caminho. Agora que há bonança, repleto homem se compôs. Os dedos já não trémulos, sem a indecisão que foi de outrora, nem o olhar decaído nos sobressaltos tantas vezes exagerados. Só conta quem conta, à conta da plenitude que arrimou no umbral da casa neófita.
Os braços abrem-se em toda a sua largueza. Abraçando a totalidade que interessa, como se o tempo fosse precário. Mas é perene o tempo assim abraçado – que se desenganem os irredutíveis realistas. Porque há em todos os gestos, nas palavras que se congeminam (pensadas ou espontâneas), nas mãos que se entrelaçam, nos olhares que são simbiose, nos afetos devolvidos, nos poemas sussurrados ao ouvido de quem ganhou seu merecimento – há em tudo isto, e em tudo mais que perfilha tais pergaminhos, lança mestra na robustez do homem repleto.

6.3.14

Druida sem poção

In http://3.bp.blogspot.com/-pwOnO2UPj6E/UlH1xbluIuI/AAAAAAAABF4/mRwDKId94nA/s1600/f03f6f54-917e-4662-ba0d-fb2f9d33336e.jpg
Precoce, a criança pegou em livros de Astérix. Fascinou-se com a personagem do druida. As fartas barbas brancas em cima do ancião emprestavam-lhe o respeito devido pelos mais novos (que eram todos os outros) e uma sageza indiscutível. Guardava os segredos das ervas e das substâncias que serviam para uma alquimia que depositava nos aldeões uma força huna.
A poção mágica era o segredo para derrotar os invasores. Os aldeões nunca foram invadidos graças à poção do druida. Ainda houve uns invasores que perceberam a tática necessária: sequestrar o druida, pois o druida nunca revelou o segredo a ninguém e recusava-se a armazenar uns lotes de poção mágica que precavesse a sua falta. Mas o druida, ancião porém, não era trôpego. Guardava na algibeira umas gotas, as suficientes gotas, para tragar em caso de ameaça pessoal. O mais sagaz de todos, o druida sabia que não podia desguarnecer a aldeia. Embora desapossado das coisas terrenas, o druida era o supremo guardião da aldeia. Tinha muitas responsabilidades. O chefe da aldeia, o chefe apenas político, já o tentara convencer a partilhar o segredo da poção. Desconfiado da natureza humana, e desconfiando que os detentores do segredo podiam usar a poção em proveito próprio, nunca anuiu. O chefe da aldeia invocava a anciã condição do druida, insinuando que era curta a vida de sobra. Só assim o druida descompunha o seu imperturbável estar, vociferando ao chefe da aldeia se o queria ver morto antes do tempo.
(À boca pequena, os aldeões especulavam sobre a idade do druida. Ninguém era capaz de tirar a medida certa. Apenas sabiam que era uma vetusta personagem. À boca pequena, alguns atiravam para o ar que o druida já levava mais de trezentos anos de vida. E que seria imortal. Sem que nunca lhes ocorresse prestar homenagem a preceito a quem é imortal, como acontece às divindades. Não lhes passou pela cabeça que o druida seria uma divindade disfarçada.)
Certo dia, o druida adoeceu. Esqueceu-se da sua memória. Tudo se evaporou do conhecimento. Nem sequer sabia quem era. O druida deixou de o ser. Já não havia poção mágica. Em dois atos, a pequena aldeia sucumbiu aos invasores. O druida, afinal, não era uma divindade nem tinha para cima de trezentos anos. Os aldeões eram mais sábios do que se supunha. E a criança aprendeu uma lição.

5.3.14

Sem fio à meada

In http://3.bp.blogspot.com/-olOwws0jR4M/TcGXOhWJhqI/AAAAAAAAAPw/4RUUzMLOjmk/s400/FIO_MEADA_AMARELO.JPG
Um filme na Capadócia, com gente rural e rude (ou, dir-se-ia, rude e rural), as reses adestradas com o cajado dos pastores com ar de rija têmpera e de grosseiro trato. Um burro ancião arrebenta os pulmões por carregar tonelagem acima da sua idade.
(Como idosos são os que frequentam, com diária assiduidade, os bancos do jardim a caminho da estação do comboio. Jogam à bisca suada, improvisando tapetes de jogo com o jornal da véspera, berrando contra a sorte dos parceiros, disparando soezes piropos às colegiais meninas que saem da escola, como se precisassem de mostrar a andropausa.)
((Por falar em escolas, passou na rua aquela careta feiosa de um antigo sindicalista dos professores, agora na respeitável pose de “perito de ciências da educação”. Mudam as casacas com os tempos e a espessura da idade transporta consigo a respeitabilidade que a rebeldia de outrora era desmentido cabal.))
(((Por artes da retórica, uns catedráticos de leis assinaram pareceres contraditórios e abespinham-se quando um plumitivo acena com a possibilidade da incongruência. Protestam com sonoros berros: é lá coisa que se faça, ó tamanho topete, lesar a palavra incontestável de um lente de leis?)))
((((Um juiz entra na sala de audiências atrasado e com notório odor a bebida. Nota-se-lhe a falta de banho. Cambaleia. A toga esconde os andrajos que foram motivo de motejo dos funcionários que o viram arribar ao tribunal, já a manhã se encaminhava para o pino do meio dia. A voz entaramelada lê a sentença. O arguido vai em liberdade. Não se provou que furtou cinco pacotes de bolacha Maria da carrinha de transporte escolar.))))
(((((À mesa do café onde tertuliam amiúde, os intelectuais encartados dissertam sobre a estética da bolacha Maria. Trocam erudição sobre teorias filosóficas que se amanham à serventia da bolacha Maria. Prosseguem pela noite dentro, defumados pelas nuvens densas de tabaco que acamam sobre a sala reservada do café. Um dos intelectuais liquida a peleja evocando um filme desconhecido do grande público, passado na Capadócia, que retrata com singular realismo a austera vida rural. As neves de inverno, aplacadas pelas peles de animais sobre os corpos dos pastores, enquanto eles se revigoram com pacotes de bolacha Maria que um turista holandês deixou para trás numa visita recente.)))))

4.3.14

Roleta russa

Massive Attack, "Paradise Circus"
Pulsão suicidária? Não – ripostavam os jogadores compulsivos. Apenas instinto de sobrevivência. No fio da navalha, com o abismo por perto, o abismo como sábio conselheiro.
Prevaricavam a toda a hora, no juízo dos loquazes benzedores da prudência. Os jogadores compulsivos contrapunham que não se adestravam na canhestra convivência com a rotina. O tempo todo igual, em temerário desfile de indiferença, era uma doença terminal. Podiam muitos persistir por anos a fio nesta existência sem sal. Eles, os jogadores temerários, preferiam o cheiro a pólvora a destilar de cada noite em que conseguiam sair triunfantes. A alvorada era um fartote de incógnitas, a maior das quais se os travesseiros voltavam a tê-los como companhia.
O sobressalto constante era sua marca de água. Era do abismo que gostavam de se sentir próximos. Constantemente afogueados, em palpitações que devolviam a adrenalina ao tempo para o tempo não se sitiar num flácido aborrecimento. As apostas eram de parada alta. Não sabiam fazer as coisas se não fossem feitas com toda a grandeza, que era a maior homenagem que achavam prestar à existência titubeante que levavam. As mãos não tremiam na hora de assinar a aposta, mesmo que dessa assinatura pudesse sobrar a bala mortífera se a fortuna os abandonasse. Nem se importunavam em jogar um jogo demencial: o de serem, porventura, seus próprios algozes.
Alguns não venceram a bala solitária que se tornou, por fatal adversidade, bala de azar. Os outros, que resistiam à indolência entediante, não capitulavam. Continuavam dependentes do jogo. Negociavam, faziam bluff, davam três passos atrás enquanto outros avançavam com os dois pés, julgando que a jogada os deixava à frente no tabuleiro em que se congeminavam as jogadas. Fintavam as balas solitárias que metiam nos revólveres. Os de fora, que contracenavam enquanto audiência, desvalorizavam as façanhas, não tomavam aquela forma de vida como sinal de audácia. Diziam sempre, em invejoso desdém, que a pistola tinha a culatra com cinco lugares vazios de bala.
Os jogadores abespinhavam-se. Ao convite para se juntarem à roleta russa, respondiam os da audiência com instintivo medo – e nem respondiam sequer. Era o que separava os bravos, tresloucados cultores da roleta russa dos que transpiravam inveja por não o conseguirem ser.

3.3.14

A casa

In http://www.joaobem.biz/blog/wp-content/uploads/2008/08/parede-decorativa.jpg
A casa onde os sonhos foram depostos. A casa, matéria física desses sonhos. Onde eles se despojam da penumbra em que viveram sitiados. Agora há paredes sensíveis, tetos com candeeiros, janelas para a rua, o soalho acolhedor, umas mãos noutras mãos. Agora, o sono alado encontrou estábulo e repousa. Repousa de olhos bem abertos, para emoldurar nos vértices da memória as representações da alma que são feitoras da casa.
Na casa há maresia em redor. De um mar que segreda o sussurro de que somos cativos. Os copos de vinho onde mergulham os olhos vívidos perfumam a casa. Que se aformoseia com o voar do tempo, que traz em sua visitação os querubins generosos que são vigilantes sublimes. As mãos que tateiam as paredes emprestam à casa as suas impressões digitais. São invisíveis ao olhar mais atento, que só os habitantes da casa as conseguem discernir no seu olhar meticuloso, com o arfar contínuo de quem é seu tutor. A casa pede flores e plantas, para rimar com a sua frondosa indumentária. Numa comunhão de sentidos, um microcosmos que faz inveja ao tamanho do universo.
A casa: virada ao mar, virada às cores que vêm do céu, ao luar que se entreabre nas portadas amplas que o decantam; testemunha de uma harmonia indizível; uma quimera aos olhos outros, já não quimera aos olhos que são sua caução. A casa empresta-se ao devir com as portadas amplamente abertas. Por ela adentra a maresia encantatória, que sobe as escadas e levita no céu alvar que se confunde com o teto. Outrora foi matéria onírica, uma paleta de cores na congeminação das almas. Como as obras o são: pensadas, nascidas, crescidas e aptas. A casa: penhora da alquimia das almas que a povoam. Seus verdadeiros feitores. Pois as casas só importam quando são obras aptas. De onde vem um porvir povoado pela cintilação das estrelas noturnas e dos dias soalheiros, ou da magia do tempo soturno que adestra as tempestades e o mar vagabundo. A casa os ampara a todos, elementos bondosos ou importunações que não escalam as ameias protetoras da casa.
A casa, em estreita comunhão com as divindades que se escondem no vasto mar: uma alcáçova de ambições sem medida. O leito onde os olhos arrecadam a serena digressão pelo devir. Pois a casa diz que o navio encontrou seu cais e já não navega por estima.