24.2.14

O machado de guerra que se desenterra (outra vez)

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Este é um breve ensaio sobre a bestialidade humana. Ou, apenas, um sentido lacrimejar que verte uma incorrigível ingenuidade. Somos o que somos. Desta matéria inescapável não sabemos ser fugitivos. Andámos na bruma da história, como andamos em sucessivos episódios, num olimpismo de matanças que destoa da antropocêntrica lição de que somos a única espécie animal dotada de racionalidade. Podem os vezeiros na necessidade do conflito humano recordar que o antagonismo, quando desce para as margens da intolerância, alimenta bestas que se esquecem da sua racional condição. Esses, que desprezam o valor incalculável de qualquer vida humana, acabam resignados à racionalidade das guerras. Dizem: as guerras servem para expiar males; e argumentam que servem para acabar com uns párias, com as suas ideias absurdas, ou o seu apego ao poder ao arrepio da hostilidade de quem governam.
O machado de guerra não chega a ser enterrado. Às vezes, quando da história sobram humilhantes guerras que são o degredo de inomináveis atrocidades, proclama-se a reinvenção dos tempos. Um otimismo exacerbado, em contraponto com as plúmbeas nuvens que vinham de trás, é servido em cálices de fina porcelana. Não tarda a esmigalhar-se a porcelana, esmagada pelos dedos duros e pela verve empedernida dos homens que não sabem aceitar a diferença. O machado de guerra nunca teve funeral. É património genético da condição humana. Que haja peritos que nobilitam a “arte” da guerra e que se entretenham a congeminar “teatros” de guerra, manipulando a carne para canhão que são os peões servidos num banho de sangue, é o espelho da má têmpera de uma humanidade desmembrada em seus fracos instintos. (E um insulto a palavras tão nobres como “arte” e “teatro”.)
As imagens que mostram Kiev em trincheiras. As imagens de gente baleada por snipers traiçoeiros. As imagens dos diplomatas que pesam todas as palavras para não ferir suscetibilidades. As imagens dos polícias e do exército, armados até aos dentes, não hesitando na violência gratuita. E as imagens dos barricados que também decaíram na violência pela violência, numa espiral que – teme-se – possa ter um fim muito adiado. É toda uma vergonha que um desenganado dos pergaminhos da humanidade não cessa de sentir.
Pode a idade acumular-se nas folhas do calendário. Podem as guerras ir e vir com o tempo. E muito sangue de inocentes ser derramado. Não sei aprender esta lógica autista, esta linguagem violenta, o depreciar da vida humana. Não sei desaprender esta ingenuidade que, todavia, já me ensinou que não há pessimismo antropológico que ganhe espessura. Não é pessimismo. É o que existe. Uma humanidade com atração pelo abismo da autofagia.
(Em Faro)

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