30.1.14

Nas costas das ondas

In http://lounge.obviousmag.org/entre_ocio_e_sonhos/2013/01/10/clark%20little7.jpg
O outro sonho do menino segredava ambição. Não era só deitar os olhos no mar. Já de si, era tarefa ousada; na aldeia, ninguém sabia como era ver o mar com os próprios olhos. Não era só deitar os olhos no mar, a ambição do menino: queria ver como o mar se deitava na praia. Queria, em dia de maré viva e ondas medonhas, que um estorninho fosse seu cicerone adejando as ondas que se despenhavam, furiosas, sobre a praia.
O avesso do mar intrigava-o. Pretendia ter o olhar desigual das pessoas que admiram a turbulência do mar no rescaldo de uma tempestade. Elas contentam-se em ser testemunhas frontais do mar. São como um cais atento que recebe o mar irado que se esgota nas areias remexidas. Mas as pessoas não conseguem voar aos bastidores das tempestades. Não sabem como são as costas do mar. Oxalá soubessem – interiorizava o menino. Talvez a sua têmpera mudasse. Talvez não abjurassem a tolerância. As pessoas entendiam-se umas com as outras, numa concórdia fermentada pelo conhecimento dos ângulos diferentes aos que estão acostumados. Ou – continuava a sonhar o menino – oxalá pudesse ser ele a contar as peripécias de um voo sobressaltado pelo vento inquieto sobre o mar encapelado. Queria que as pessoas acreditassem na sua narração. Queria ser escrupuloso na descrição das ondas no seu avesso. Para que todos soubessem que há um corte de alfaiate que não quadra com a normalidade que impera.
O menino sonhava controverso. Na sua inocência, nem desconfiava que há muita gente entediada com os que prometem descerrar os lados escondidos. A perturbação da ordem seria infâmia sem perdão. Mas o menino está no tirocínio da existência. Ainda não aprendeu a entender os crescidos. Nem sonha como é a tremenda complexidade dos crescidos. Quando ele próprio crescer e for apresentado aos primeiros laivos dessa complexidade, vai passar um mau bocado. A menos que continue mergulhado nos fantasiosos sonhos e diligente nas epopeias que promete travar. A menos que se lembre das costas das ondas e do recorte diferente do naco de terra que se aclara quando a ondulação se desfaz em espuma efémera.
O menino só sabia uma coisa: os seus sonhos são maiores do que o mundo inteiro.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

As rosas do deserto, as esculpidas pelo vento, compreendiam como poucos os sonhos do menino. Algumas delas já contavam centenas de anos!
Ventos mais atenciosos não contribuíram só para a sua modelação, foram também incrustadores de poemas e composições musicais. Uma das rosas relembrou um poema de Alberto Caeiro: "se às vezes digo que as flores sorriem" ... Outra recordou uma música que fez questão de fazer chegar ao menino para ele guardar. Pensou ela: "crescer rasura a inocência e não vão os olhos do menino voltar a embaciar durante um dos muitos sonhos que o aguardam ..."
(http://www.youtube.com/watch?v=vqrYLyza52Y&feature=share)