1.1.14

Glória datada

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Era uma vez. Passava o tempo a fazer de conta que era uma vez. A mergulhar no tempo datado, resgatando desse tempo (variável, consoante o tempo na sua sucessão) os símbolos datados. Pedia emprestado ao tempo de antanho a memorabilia que enfeitava o seu, sob protesto, tempo. Era como se tivesse nascido a destempo. Ou como se estivesse moído pelos suores do tempo que era seu testemunha. Embolsava as alvíssaras do tempo ido e prolongava a sua existência para o tempo que era fora do tempo, o tempo seu que era um tempo a destempo.
Convocava a glória dos instantes pretéritos que serviam para evocação de tamanha glória. O bigode ancestral, curvado nas extremidades, cuidado com a diligência que os aristocratas novecentistas punham no adereço facial. O chapéu, fosse inverno ou andasse o tempo em visitação estival, saía sempre à rua. Na quinta da família – o derradeiro expoente salvo da decadência que assolou o património brasonado – montava num dos cavalos mal a alvorada irrompia, o trote era vingança da má frequência do tempo presente. Frequentava arquivos de bibliotecas. Era ávido leitor de numismática, literatura tauromáquica, especialista autodidata em genealogia. Fizera estudos em história. No acanhamento de um escritório de negócios, declinava-se perante a monotonia de um emprego que precatava as despesas correntes, apesar da contrariedade de um emprego pouco mais do que manga de alpaca que o punha em desassossego. Sentiu-se ultrajado quando o governo matou o feriado da restauração. Seria encomenda dos espanhóis, os eternos inimigos, já que havia de cumprir o adágio que o povo eternizou (de lá, nem bons os ventos nem aconselháveis os casamentos).
Ao fim do dia e nas noites de fim de semana, ajuntava-se a outros que pensavam na mesma bitola – com as ideias diferentes lidava mal e tivera umas pelejas bravas com quem tivera o topete de discordar, fosse em tertúlias a que ia em demanda de briga, fosse em jantares de amigos onde apareciam uns paraquedistas a pensar o disparate. Havia sempre um momento reservado das senhoras. Elas iam arrumar a cozinha e eles puxavam lustro aos pequenos vícios burgueses (ó aleivosia, que os burgueses vícios tinham já contaminado a aristocrática pose!). Subia à boca de cena o escarro marialva. Era quando falavam delas com o desdém próprio do convencimento da superioridade máscula. Riam-se boçalmente da sua própria boçalidade.
A última descoberta viera afivelada pelos seus incomensuráveis conhecimentos históricos. Atirara-se outra vez ao governo (mas ai de quem lhe lembrasse que as esquerdas todas, desde as moderadas às radicais, também tinham esse entretenimento, que ele virava as tripas do avesso). De caminho, atiçou os mastins à Europa vilã. E lembrou os demais que começava hoje o ano em que fazia cem anos que começara a primeira guerra mundial. Sem dar conta que tropeçava na antítese da glória, da datada glória, que preenchia a sua paisagem temporal.

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