9.12.13

A impugnação das almas

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Numa noite de boémia, em que o nevoeiro da embriaguez já pousara nas pálpebras, esbarrou num padre que afagava mágoas no balcão do bar. Só soubera que aquele homem ainda jovem, impecavelmente apessoado, era padre depois de uma conversa que já ia demorada. O homem fraquejou e teve de confessar, não fosse o seu bom deus destravar a implacável ira sobre um seu embaixador, que era sacerdote.
Tinha a impressão que o padre, ali no formato de homem, estava ainda sóbrio, enquanto ele já tinha transposto o portão da ebriedade. E, todavia, era o padre, deposto na sua humilde condição de homem, que tomou as rédeas da conversa. Para sua surpresa – tanta que, a páginas tantas, parou de beber –, o padre inverteu a posição que costumava ser sua e desceu ao rés-do-chão de onde os mortais imploram por perdão depois de arrotearem o lodaçal dos pecados. O padre precisava de falar. Começou por admitir que de tantas confissões escutar (“só hoje foram dezassete”), já nem se lembrava dos seus pessoais pecadilhos. Talvez se refugiasse na frugalidade do confessionário para não se intimidar com os próprios pecados.
Destemido, como só os vapores do álcool caucionam, desafiou o padre: “não acha que foi para o sacerdócio para ocultar fraquezas?” O padre estugou a bebida, disparou um olhar iracundo, mas depressa regressou à humilde condição de quem se desnudava ao penetrar o olhar remoto no fundo do copo de onde o uísque se esvaziava. Concedeu: “é isso mesmo. Como posso julgar os outros que aparecem em confissão se transito pelos terríveis caminhos do pecado?” Começou a chorar. Com a abundância de uma criança a quem foi furtado o brinquedo preferido, ou de alguém que via partir um ente querido. À volta dos dois homens era, como se o tempo estivesse parado. Pela indiferença dos demais. Ficou incomodado quando notou o choro convulsivo do padre. Julgava que as pessoas à volta iam reparar e se achegariam em solidária curiosidade. Foi o contrário. A boémia não dava espaço à comiseração.
Fez-se um silêncio sepulcral – até a música que antes berrava parecia ter entrado em hibernação. Era um silêncio demorado, apesar daqueles instantes não serem a moldura de uma demora qualquer. Ele não sabia que palavras compor para apaziguar o padre. Atrapalhado, e com a habitual falta de jeito para usar palavras quando o momento as exigia, passou o braço pelos ombros do padre. O sacerdote, despojado da sotaina quando desnudou a sua perplexidade interior, enxugou as lágrimas, levantou os olhos e assegurou, convicto “era a minha alma, antes de todas as demais, que merecia impugnação”. E ele, mau grado o ateísmo incorruptível, fez a interrogação final: “e se conversar com o seu deus, não consegue aplacar as transgressões que o importunam?
O padre saiu do balcão. Intempestivamente. Ainda foi a tempo de o ouvir a vociferar entre dentes: “e quem é deus?

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