29.10.13

O rio do leito seco

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Tanto fora o estio que a cama onde o rio se deita ficou à mostra. Em toda a sua rudeza, com um desorganizado amontoado de calhaus na trajetória que ditava o percurso das águas empurradas pela corrente. Ainda brotaram uns arbustos perseverantes, bebendo das entranhas quando o fio de água por fim se extinguiu e o rio passou a ser um seco rio.
O estio durou meses. Tanto tempo que nem os mais velhos se lembravam. Eram sobretudo eles que paravam em cima de uma das pontes, ou ao longo da margem do rio, contemplando-o com ar pesaroso. Nem os mais velhos tinham lembrança de alguma vez o rio se exaurir. Talvez por serem mais velhos e, portanto, mais dados às recordações – ou apenas porque, reformados, cativavam tempo para demoradas observações do que era apenas babugem para os mais novos e para os não tão novos todavia apoquentados pelo tempo exíguo –, os velhos franziam o sobrolho quando os cansados olhos apreciavam o fenómeno insólito. Os especialistas do clima forneciam as explicações. Advertiam que a barragem terminada um par de anos antes ajudava a dissolver o mistério – que, afinal, o não era.
Os idosos repetiam-se no ritual enquanto a canícula durou e no horizonte não se antecipava um projeto de nuvem que terminasse com a estiagem. Estavam mais desolados do que a desolação do seco rio. À uma, todos mirrados – e, por isso, alguns dos mais velhos que iam na diária peregrinação para a radiografia do curso desnudado do rio, achavam que havia ali um sinal divino, uma mensagem premonitória. E se uns, mais dados a esotéricas especialidades, asseguravam que vinha aí o fim do mundo, outros, mais terra-a-terra, apenas certificavam que o seco caudal do rio era o retrato da sua própria senescência.

Um dia, já o verão caminhava para o decesso, pôs-se uma tempestade temível. Do nada, veio um aluvião de chuva. Em três horas caiu tanta chuva que o leito do rio voltou a abraçar a água de que sentia tanta falta. Em alguns lugares, a veloz corrente transbordou do caudal. Um dos idosos, empunhando guarda-chuva e arregaçando as calças molhadas, sentenciava que era o fim do mundo. Outro, enquanto desfolhava o jornal local, encolhia os ombros e contrapunha que não, que era apenas a natureza excessiva. A natureza que se atravessa nos seus limites como quem esboça um piscar de olhos.

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