1.10.13

Febril


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As águas submersas lutavam contra o corpo atado. O corpo que precisava de se desprender para não ficar sitiado pela apneia fatal. À medida que os braços queriam desaferroar das algemas que amordaçavam o pano farto que envolvera o corpo, o sangue fervente incendiava uma constelação de imagens. A certa altura, não sabia se eram imagens cruas, ou só imagens que desembainhavam a alucinação preparada pelo oxigénio em rarefação.
Havia corpos mutilados envergando coroas de flores apodrecidas. Sereias sorridentes que perguntavam se carecia de ajuda e depois implodiam em sua evanescência. O corpo petrificado de um pirata que manteve a pose maléfica. Uma torre que desabara a meio de uma tempestade, os tijolos desmembrando-se à medida que a salinização do mar consumia a estrutura na sua decadência. Crianças felizes em correria de um lado para o outro, respirando até nas profundezas dos mares a par com a inocência da tenra idade. Lençóis de veludo que se conservavam secos, como se o enxoval fosse imune à largueza das águas. Sacerdotes, das mais variadas crenças, interiorizando suas preces sem abrirem os olhos. Marinheiros naufragados escondidos nas reentrâncias submarinas, saindo de suas tocas de braço dado com as ninfas que à superfície seriam tidas como sereias. Gente importante, em desfile exemplificativo, sem nunca perder a pose grave que rima com a gravidade dos negócios que comandam. Poetas tresloucados reinventando a linguagem, dedilhando estrofes dentro das bolhas de ar libertadas pela respiração. Argonautas mergulhando, só para experimentar o sabor do mar. Pedintes que açambarcaram vestes sumptuosas e passeavam sua loucura, desinteressados com a abundância material a que podiam ter metido mão se não tivessem feito de conta que não viram o tesouro escondido nas profundezas do navio naufragado. Gente asceta, desaparafusando a rosa dos ventos de onde vinha o tempo déspota, empanturrando-se com as delícias entronizadas no momento fervente.
Por entre tantas e velozes imagens, o sangue fervente dilacerou as veias. Até que, consumido pelo suor que ensopara a cama, acordou do sono tumultuoso. O estado febril, que fora comatoso enquanto o pesadelo tivera seu trono, já não tinha justeza. Fantasmas hasteados pela alucinação onírica eram isso mesmo: fantasmas. E os fantasmas não existem.

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