7.10.13

A dança dos have not


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Era a noite das insónias. As ruas não estavam desertas, como julgara quando se meteu em aleatória divagação pela cidade. A noite era a que partia a semana a meio. Inverno. Chuvosa, a noite, o vento silvando o seu eco entre as esquinas dos edifícios. Não estava a noite para volteios noturnos da habitual trupe foliona. Tudo se conjugava a preceito para uma noite sem vivalma em redor. Era um olhar diferente pelas ruas habitualmente frequentadas pela multidão apressada que vai para a jornada igual às outras e depois dela regressa com pressa de se aninhar em casa.
Errou na previsão. As ruas não se emprestavam à ausência de almas. Vagueavam os have not, exibindo a melancolia que cavalgava na invernada. Uns ajuntavam-se em abrigos improvisados, puxavam com força a cama também improvisada, feita de caixas de cartão prensado, ajeitando os cobertores para os retirar do amanho da chuva que queria inundar o que estivesse à mão de semear. Outros passeavam a sua insónia, ou estavam apenas em contramão contra a exibição tumultuosa que é a cidade quando a luz diurna clareia suas feições.
Percebeu que alguns have not, não se intimidando com a invernia em estado agitado, esquadrinhavam o lixo que podia ter serventia. Passou ao pé de um bando destes homens e mulheres, todos eles na fronteira da terceira idade (se as rugas e os olhares tão tristes como ausentes não fossem apenas a configuração da velhice precoce). Os impermeáveis gastos e imundos escorriam a água da chuva pelo corpo abaixo. Notou num deles algumas gotas que desciam da aba do chapéu e faziam o seu caminho pelo rosto. As mãos, protegidas pelas luvas que só deixavam à mostra o terço final dos dedos, mergulhavam no entulho sem medo da imundície. Uma mulher com o cabelo desgrenhado debaixo de um chapéu vistoso mas roto olhou-o com desdém. Disparou um olhar agressivo e encenou um gesto intimidatório, como se o quisesse atingir com o punho fechado. Rosnou umas palavras ininteligíveis. Ele perguntou se a mulher queria ajuda, se se sentia mal. A mulher virou as costas e os outros, em jeito de solidariedade com a mulher agora indiferente, mostraram o mesmo desdém. Continuaram a dança desorganizada. Queriam lá saber do intruso que os observava como se fossem animais do jardim zoológico.
Depressa percebeu que não era bem-vindo. A insónia ganhou outra latitude. Foi para casa. Sentia-se o mais indigente de todos com a valsa de miséria que entrara pelos olhos e se metera bem fundo no corpo inteiro.

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