30.5.13

O velho que passa o tempo no banco do jardim


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Aprendeu a solidão. Aprendeu a olhar o sol como bússola do tempo sobrante. Só lhe custava aguentar a invernia, e não era pelo tempo desagradável que se punha; era por os elementos não se conjugarem em sua vontade para que ele pudesse ir em deambulação até ao banco do jardim onde gastava o tempo diurno.
Aprendeu a viver com as saudades da consorte que partira. Aprendeu a conviver com a indiferença dos filhos e dos netos – não fora o natal, no repetido e frio gesto de caridade na rotação entre os filhos, e poucas vezes viria à lembrança que tinha família. Aprendeu que não serve para nada acordar resmungão e destilar ódios pelo resto do dia. Ainda experimentou a triste ladainha dos reformados que se cansam de ter um teto em cima da cabeça e de acordar ao lado da consorte eterna, mas as tascas não eram seu habitat. Aprendeu a olhar no espelho e a contar as rugas pronunciadas, o olhar cansado pela insónia que furtava as mínimas horas de sono, a barba desarranjada e o cabelo sem alinhamento com que saía de casa mal a manhã metia o dente no relógio. Já os filhos o tinham advertido que tinha desatendido a figura.
O que não aprendeu foi a passar o tempo metido dentro de casa. Podiam ser as evocações da consorte, por mais que a televisão fosse companhia, por mais que se abastecesse de literatura diversa, entre jornais, revistas e livros da preferência. Pensou mudar de casa. Que talvez os fantasmas que se apoderavam do sono não entrassem com ele na casa nova que viesse a habitar. Tirou daí a ideia. Julgava, sem ter argumentos convincentes para o explicar, que se mudasse de casa traía as memórias da consorte que se habituara a guardar.
O luto demorado – é genético da geração – convocava novos rituais. Sair de casa e só voltar quando a noite se anunciasse. Cozinhar o jantar. Deixar a cama por fazer. Limpar os vidros ao ritmo das quintas-feiras. Não regressar aos álbuns de família que enxameavam as estantes do escritório. Não abrir os armários onde deviam jazer os pertences da consorte, não fosse a teimosia dos filhos em dá-los para caridade.
O tempo diurno passava por um fio num banco do jardim. Lia muito. Jornais de fio a pavio, um ou outro livro empilhado na mesinha de cabeceira (nunca repetia os livros em dias consecutivos). Observava quem passava. Num caderninho de capa lilás, anotava comportamentos. Tecia juízos sobre os namorados amuados, os amantes em encontros furtivos combinando outros encontros furtivos, as crianças vertendo a genuína felicidade dos inocentes, os ciclistas ora empenhados, ora diletantes. À hora do almoço, enganava a fome com uma bucha num bar perto do jardim. Voltava a ler, mesmo que o desentolhimento das pernas o levasse a uma lenta caminhada pelas ruelas do jardim.
E assim tomava conta do tempo, num sincero adiamento do dilúvio que seria seu destino sem que fosse lauta a demora. De tão escasso, esse tempo era ouro.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

"Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o oprimem."
(Bertolt Brecht)