15.5.13

A imprestável coerência


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Há uma bússola, preciosa bússola, perdida algures entre livros penhorados em prateleiras empoeiradas, que guarda o segredo da coerência. Grande parte do tempo provém das grades da coerência – e sim, a coerência é uma unção que nos aprisiona, desfazendo a espontaneidade porque é maior o temor de uma incoerência vir de mansinho, como grande pecado a enodoar a presença.
A coerência devia ser afim aos padecimentos individuais. Devia haver uma muralha que impedisse os outros de espiolharem atos e palavras em rima com a (dizem eles, os juízes de alheias condutas) indecorosa incoerência. Porque esses lautos sacerdotes da alteridade são implacáveis quando ajuízam passos em falso nos outros, tal a destreza em serem purificadores de almas outras. São exercícios vãos, aviltantes. Quem escava as profundezas dos outros com a intenção de neles decifrar palavras que se contrariam num tempo diferente, mortifica-se com a alma a que foi aquartelado.
O mal está todo feito quando, sem encomenda de ninguém nem véu de legitimidade razoável, personagens soezes lucubram sobre as contradições que não são suas. Imagina-se tais agentes imaculados, tarefa impossível a de encontrar pecadilhos que os empurrem para o lodo da incongruência. É o trejeito de ser porteira desocupada que treina a língua comprida com as vizinhas também elas desocupadas, o desporto favorito da bisbilhotice e da maledicência. Talvez não gostem nada da vidinha própria que levam, estes juízes que ajuramentam a validade das palavras e dos atos (dos outros) com a benta coerência.
E o que interessa se as contradições em tempos diferentes são intencionais ou apenas distraídas? Elas são património genético de quem as tutela, os indivíduos que são seus autores. Mais impressão causa um sacerdote com o livro sagrado em riste, zeloso por afiançar (e logo destruir) incoerências afiveladas que suas não sejam, do que os ingénuos ou apenas provocadores agentes que são os maiores fornecedores das contradições. Já Walt Witman o admitia, em pose terapêutica: “(c)ontradigo-me? Pois bem, então contradigo-me. Sou extenso, contenho multiplicidades.
Os oficiais de diligências que andam à cata de alheias contradições vivem amuralhados numa pequenina personalidade, reduzidos a um mundo que se denuncia na sua estreiteza. Os horizontes acabam nas incoerências dos outros.

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