8.4.13

Sereia negra

In http://www.fotografodigital.com.br/trabalhos/full/76666.jpg
No resto do tempo não saiu do navio. Dentro do exíguo camarote, a ventoinha aligeirava o peso do ar tépido e húmido que arqueava os corpos num cansaço mortiço. Deitado no beliche, com o teto branco onde sobressaíam os rebites metodicamente aparafusados, esforçava-se por resgatar lembranças de todo o tempo gasto em terra de que não tinham sobrado memórias. Só podia ser de alguma bebida envenenada, ou que alguém tivesse oferecido umas substâncias alucinogénicas que varreram toda a memória. 
De repente, contava os rebites aparafusados no teto, uma reminiscência fez-se à superfície: ao entardecer, o corpo repousava numa sombra onde sentia o vento quente, o olhar alcançou um vulto que fez notar a atenção. Era uma menina. Ao que a distância deixava perceber, uma menina quase a despontar para a adolescência. Os gestos eram graciosos. Uma leveza no andar que, diria, tinha pergaminhos de bailarina. As mãos eram toda uma linguagem gestual, tão expressivas. Brincava com outras crianças, negras como ela. Com o encanto genuíno de quem não sabe ainda o que são as acrimónias da existência, mais a mais numa terra onde as necessidades espreitavam nas ruas frequentadas por turistas (e o que diria se se embrenhasse nas ruelas esconsas onde tropeçavam, umas nas outras, as casas insalubres que eram hospedagem do povo médio?).
As crianças achegaram-se. Pareciam ir no sentido oposto ao do ocaso, como se quisessem apressar a noite que era desinquieta. Ou, possuídas por uma inteligência espontânea que escapa a tantos adultos, iam para o lado contrário do sol sobrante sabendo que a penumbra albergava o ar mais fresco. Limpavam o suor dos rostos, os pés descalços encardidos por uma substância gordurosa que se decompunha em poeira, suor e os detritos apanhados na caminhada estroina pelas ruas. Viram-no, imóvel e derrotado pelo ar tépido que não desarmava. A rapariga tinha ar de sereia. As feições perfeitas davam enchimento a uns olhos negros, grandes e redondos, que tomavam conta do rosto. Quem para ela olhasse, só via aqueles olhos tamanhosos que irrompiam do rosto e que pareciam falar. As crianças queriam moedas, uma garrafa de refrigerante que ainda fosse fresco, uma recordação qualquer que, era de antanho, sabiam recolher da generosidade dos marujos desembarcados na ilha.
Falavam em dialeto. E pelo meio do dialeto ele ainda agarrou um punhado de palavras esparsas que eram de um francês esforçado e com sotaque típico. A pequena menina tomou-o pela mão mal se ouviu, vindo não se sabe de onde, uma música estridente. Convocou-o à dança – logo ele, desde que se lembrava da existência, zangado com a dança. Dançaram todos aquele recorte de reggae ilhéu, repetitivo e hipnótico.
A menina que era o desenho de uma sereia segredou-lhe um rumor, um rumor qualquer no dialeto cerrado. Jurara que era uma feiticeira que lia a sina, enquanto lhe tomava a mão com o calor exuberante que saía da sua. Nas noites seguintes, sonhou com a meninice que tinha como a única época de que irradiara contentamento espontâneo, genuíno. Talvez fosse a sina da pequena sereia negra. 

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