30.4.13

Porcos avulsos


In http://4.bp.blogspot.com/-cPdn4dmCUAM/TqzA7Alh_TI/AAAAAAAAAJA/XkvqiPiB7Io/s270/porcos.jpg



É a desordem na autoestrada: um camião de transporte de suínos despistou-se e os recos, ato contínuo, soltam-se da prisão e vêm espalhar a confusão no alcatrão. Os bácoros desaustinados, errantes como se diz acontecer com as tontas baratas, e os utentes da autoestrada forçados ao estacionamento, ou uma coisa má lhes acontece se acertarem num pesado porco desorientado.
Os suínos, histriónicos e acometidos pelo pânico, irrompem furiosamente pelo alcatrão. Dir-se-ia estarem tomados por uma alucinogénica substância, tão heróis avançam pela autoestrada sem saberem se vão no sentido do obrigatório sentido ou em contramão. Furiosos, arremetem com o focinho ensanguentado, não pelo trambolhão que poderia ter esfacelado corpos na fricção violenta contra o solo, mas porque adivinhavam o matadouro que queriam evitar, barrando o nariz contra as grades untuosas do camião de transporte. As reses andavam por ali, umas rebolando-se no alcatrão em sinal de demência, outras resguardando-se na relva desmanchada do separador central da autoestrada. Um ou outro, ferido e esvaindo-se em dor, acometido pela fúria indomável, mete o focinho contra carros estacionados, amolgando-os. Os donos contagiam-se com o desatino da vara. Começa a guerra: pessoas desmioladas a tentarem placar porcos como se fossem jogadores de rugby, os porcos como adversários, fazendo as vezes de jogadores de rugby, ensaiando fintas mal ajeitadas que o sobrepeso prejudica a destreza.
No meio da confusão, um porco enraivecido mete o dente na perna de uma senhora inocente que tinha posto o pezinho fora do carro para saber o porquê de tanto banzé. Um camonista, ainda a dissolver as duas garrafas de tinto tragadas ao almoço (ele assegura que conduz melhor com uma pinga de vinho), sonha com o presunto generoso de um bácoro à mão de semear.
Entretanto chegou a polícia armada com bastões e redes para aprisionar porcos relutantes. Alguns utentes, preventivamente resguardados dentro dos carros, entoando as preces necessárias para os cascos imundos das reses não provocarem danos na carroçaria, ficam perplexos ao saberem que a polícia estava equipada com redes de captura de animais. Só que os porcos são de tamanho extra e o desnorte que deles se apoderou torna-os criaturas temíveis. Os polícias agem timoratos (viram a senhora a ser mordida, e como sangra da perna entumecida). Os mais corajosos avançam com as redes. Um tropeça na rede arrastada por um porco de acasalamento, os cascos do animal pisoteiam o polícia que fica deitado no alcatrão, mesmo ao lado de um pedaço de estrume entretanto defecado.
E o polícia, entre a lucidez e o desmaio, só consegue pensar como os porcos avulsos são catedráticos em desonestidade intelectual.

29.4.13

Ácido sulfúrico


In http://web.ccead.puc-rio.br/condigital/mvsl/museu%20virtual/curiosidades%20e%20descobertas/Estudo_reacoes/img/acido_sulfurico.jpg
Depende da perspectiva: ora podemos ser sapientes, quando temos opiniões que são música para os ouvidos das pessoas corretas; ou depressa passamos a gente apedeuta, embebida em maus instintos, com uma propensão irrecusável para estar do lado errado da contenda. Nós, o “povo”. Também pode dar-se o caso de um politólogo respeitável perder a sua respeitabilidade enquanto alinhava opinião que se perde nos maus caminhos da parcialidade (quando essa parcialidade arranha os ouvidos das pessoas corretas). Às tantas, os dois exemplos servem-se reciprocamente.
Os islandeses voltaram a confiar nos partidos que não souberam prevenir a crise financeira que quase levou o país à bancarrota em 2008. Isto pode ter duas lentes possíveis. Vai começar a do politólogo respeitável que faz os possíveis para não se desligar da imparcialidade, que os cânones da profissão assim mandam. É a democracia virada do avesso pelos seus paroxismos – diria, erudito, o politólogo respeitável (logo mandando a turba ao dicionário ver o significado da palavra “paroxismo”). Ao politólogo respeitável, se ainda tivesse audiência depois de usar a palavra “paroxismo”, não interessa explicar como pode a maioria de um povo esquecer-se da expiação coletiva que o levou a esconjurar os partidos que, diziam fontes insuspeitas, foram responsáveis (por causa da inércia) da quase bancarrota da Islândia. O politólogo respeitável deve assumir modos pedagógicos, ensinando aos mais incrédulos, os que ficaram boquiabertos com a mudança de vontade da maioria dos eleitores na Islândia, que os resultados das eleições não se questionam, aceitam-se.
Mas há também o observador despido das peias da imparcialidade. Aquele que apetece dar de provar a esquerdistas convencidos da suas imperativas certezas algum do veneno que destilam sobre quem com eles não alinha. Este observador não deixa de anotar a ironia. Os islandeses eram os novos heróis dos movimentos desencantados com o andar das coisas. Eram a nova esperança de onde haveriam de soprar ventos gentios para que o hediondo mundo dominado por manadas de capitalistas e financeiros desapiedados desaparecesse do mapa. Os islandeses aceitaram condenar banqueiros em tribunal, negaram (em referendo) pagar empréstimos que tinham salvo a Islândia da bancarrota, quase conseguiram meter um antigo primeiro-ministro na cadeia (safou-se no julgamento) e, nas eleições de 2009, varreram os partidos de centro-direita para a cura de oposição. Quatro anos. O tempo suficiente para a maioria dos islandeses se cansar da esquerda folclórica que depressa roçou a desesperança. A maioria dos islandeses voltou para o inferno: escolheram o mesmo centro-direita criminoso para tomar o leme do poder.
A memória será curta. Ou a ironia do destino falará mais alto. Admito que o povo que há uns meses era herói, agora seja uma besta. E admito que muitos esquerdistas convencidos que são curadores da tolerância (mas só da que lhes apraz) mandariam, acaso pudessem, ácido sulfúrico para cima de cada islandês que votou nos partidos do centro-direita.

26.4.13

A não morte


In http://1.bp.blogspot.com/-tb6oZCFkgg8/TwCLHWklAmI/AAAAAAAACEg/pxc_w5a2Fzo/s1600/Flores103.jpg
(Depois de “Rozencrantz e Guildenstern”, de Tom Stoppard)
Não. Não é possível que eu morra. Não estarei cá para ir ao meu próprio funeral.
E a morte, interessa? Parafraseia-se Shakespeare: a morte é uma arrelia por causa da eternidade. Os religiosos, os que acreditam num deus qualquer, os que adormecem serenos ao saberem que no derradeiro encerrar de olhos têm a eternidade abonada, olham de frente para a morte. E se a eternidade for um longo bocejo, nós despidos do corpo, agarrados a uma promessa de imaterialidade que não podemos experimentar na vida que sabemos ser?
Uma ideia entranha-se em seu desassossego: o nosso funeral é o único a que não podemos ir. E o que dirão de ti no dia do funeral em que tu, já féretro e encerrado no caixão, não tens os sentidos em ebulição? Dirão, como é de bom tom recordar quando um mortal assume a sua mortal condição, que teve uma existência exemplar, o cortejo de predicados invejáveis, com gente a desfazer-se em lágrimas pela perda que a tua partida representa para a humanidade. Aos mais narcísicos é que custará saber que não podem ser testemunhas do sua cerimónia fúnebre. Seria um dia triunfal, só que o narciso terá partido com a definitividade do último sopro.
A morte é um não assunto. Incómoda, mete a foice fria na carne que adormece, já decadente. Mas a morte é o lugar prometido onde se extingue a perenidade. A existência é efémera só o é para os que não se incomodam com a eternidade prometida para depois da existência. E a eternidade deve ser uma maçada sem comparação. A morte, quando vier, virá em seu devido tempo. Dizem os costumes que os que abalam novos ainda são credores de vida que lhes foi subtraída a destempo. E de que serve o apontamento de injustiça? A morte, quando vier, vem em seu devido tempo. Do resto tratam os caprichos da grande roda da vida que, entre em lotarias intermináveis, seleciona os escolhidos.
E que dirias do que dirão os que estiverem em prantos interiores diante do teu corpo finado? Que exageram nos panegíricos.