19.3.13

As estrelas em combustão


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No entardecer brumoso, à falta de outra serventia do tempo, pegou num livro da estante. O primeiro a que os dedos meteram carne. Veio poesia. Herança de uma antiga namorada que se esquecera do espólio não reclamado. Dele não se sabia sensibilidade para a poesia. Mas estes dias sem rotina eram a procura de algo que viesse sombrear a diferença do habitual. Assim como assim, a reviravolta que a vida dera, agora que a ocupação do tempo excessivo era passatempo forçado (não fosse a sanidade mental ressentir-se), convocava caminhos insondados. Abraçava-se ao que nunca julgara ser manifesto no mapa quotidiano. A poesia era a próxima novidade.
A bruma lá fora compunha o cenário propício aos poemas densos que traziam os olhos cativos. Dantes não julgara ser capaz de ter um livro de poesia nas mãos por um par de horas. E elas já iam, essas horas, sem que o interesse decaísse. Não deu conta do tempo passar. Descobria outro gosto sufocado na vida (sabe-o agora) desinteressante que levava naquela longa altura em que grande parte do tempo era consumido com trabalho desinteressante.
Reteve uma estrofe: “tenho de inventar a minha vida verdadeira.” Releu o verso, vezes e vezes. Tecia analogias mentais com o desafio embainhado há semanas, desde que deixara de contar para a população ativa. Transformou o verso, mudando o ponto final por uma interrogativa: “tenho de inventar a minha vida verdadeira?” Foi a pergunta que não o abandonou nos dias que vieram depois de rompida a rotina de tantos anos. Depressa soube dar resposta – e ela foi sim. Voltou à introspeção, tomando a interrogação como mote numa suave mutação: “tenho conseguido inventar a minha vida verdadeira?
Pousou o livro entreaberto na página onde repousava o verso que tomara a atenção. Deixou o pensamento ir em sua liberdade, ora esbarrando no atrito das ideias feitas, ora escorregando no musgo que fecunda o rompimento com essas ideias feitas. Espreitou sobre os meses de vida reinventada. O orgulho espreitou à superfície. Não tinha saudades de ter um emprego – pelo menos como o emprego enfadonho que deixara de ter. Redescobrira o que já esquecera e muito mais eram as conquistas para o conhecimento. Dele diziam os mais próximos que o olhar tinha um brilho de que já não se lembravam (uns) ou que não conheciam (outros). Foi preciso o sobressalto para nascer uma oferenda airosa, sem que o crepúsculo se intimidasse com o amanhã que se anunciava enferrujado.
Na manhã que veio a seguir, ainda na cama, resgatou o livro ainda aberto na mesma página. Deu conta que o verso que transformara em interrogação semeou outra inquietação: dantes a vida que levava não seria verdadeira. Mas não vinha daí mal ao mundo. Antes chegar a tempo de uma vida. Nem havia tempo para gastar com o arrependimento que o seria se o sobressalto pela vida quimérica se prolongasse para o tempo que estava à espera de o ser.

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