1.2.13

Misericórdia com freios


In http://www.papeldeparedehd.com/wallpaper/thumb/ceu-azul-e-um-lago-perdido-nas-montanhas.jpg
(Depois do videoclip dos How to Destroy Angels, “How Long”)
As piores profecias rimam com distopias. Confirmam o pessimismo antropológico sem remissão. Os maus predicados da espécie refinam-se no tempo ainda ausente. São cortinas de fumo que arrancam a bonomia de dentro das pessoas, esventradas pela impiedade, corroídas por um sentir maquinal que reduz a nada o que ainda haja de benigno.
Talvez por causa de um cataclismo qualquer, tendo as cidades por dizimadas, a sobrevivência foi atirada para montanhas inóspitas. As pessoas outra vez caçadoras, ninguém podendo confiar em ninguém. Os sobreviventes, descrentes nos instintos do semelhante, prostrados numa errância solitária. Sobram umas exceções – um filho jovem a cuidar da mãe enferma, a mãe que precisa de beber água fresca para aplacar as dores da doença porventura terminal. À míngua de água na caverna escavada nos contrafortes da montanha, o jovem mete-se ao caminho, explora o terreno em redor. Do alto de um promontório alcança, à distancia de umas léguas, um pequeno lago. Falta vasilha para armazenar a água. Empreende a descida, não convencido da contrariedade. Improvisará maneira de reter um pedaço de água.
Ao chegar à margem do lago depara com um homem velho, longos os cabelos e as barbas, hirsutos e imundos. O homem verte a água que consegue para um cantil. Tomado por uma demência instantânea, o jovem ataca o velho pelas costas, deita-lhe as mãos ao pescoço, estrangulando-o. Poucas as forças, o velho percebe o ocaso que se aproxima. O instinto manda-o ensaiar um esgar de misericórdia quando os seus olhos conseguem entrar no firmamento dos olhos do jovem. A demanda é inútil. O rapaz está resoluto. O seu olhar petrificado finge a demanda de misericórdia. A demência fugaz embaciou o entendimento. Só havia uma imagem fixa a passar em modo repetitivo: a mãe em sofrimento, lívida e desidratada, exangue de forças, talvez irremediavelmente condenada.
Mal tirou a vida ao velho, só queria tornar-se dono do cantil. Já na caverna, puxou a cabeça da mãe para a frente para que bebesse uns goles de água. A mãe esboçou um sorriso – agradecia. O rapaz retribuiu, um sorriso ainda mais reprimido. Não sabia se a misericórdia que negara ao velho fora transferida para a mãe, como se de uma medicinal transfusão de sangue se tratasse.
Deitou-se cercado de dúvidas. E se a água e os cuidados que dedicava à mãe em terminal estado fossem a antítese da misericórdia?

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