28.2.13

Um lampejo de claridade


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Retificava o olhar. Queria que assim fosse, depois de um sono demorado. Retificava o olhar, agora que a luz matinal, fresca como frescas são as manhãs invernais, aclarava os sentidos. Podiam as dúvidas ser o prontuário de onde irrompiam indecisões. Podiam as inseguranças ser uma armadilha que o apanhava, às dúzias de vezes. Mas aquela manhã fora o selo de um apuro das coisas todas. Destituíra as dúvidas e sepultara as inseguranças. Investira-se na plenitude do seu eu – até daquele eu que procurava esconder de si mesmo, do eu acantonado no refúgio do pudor.
Um feixe de luz clara invadia o quarto. Aproveitava a cortina corrida e a janela aberta, que ainda sentia o odor carregado da noite estouvada de há dois dias. Nem sentira passar esses dois dias. Era capaz de jurar que os dormira de uma assentada. Mas não era possível, o sono nunca fora o seu forte. Talvez tivesse intercalado o sono com um torpor que o levara a acreditar que também era sono. Fosso o que fosse, na manhã fresca sentia-se um homem renascido. Desta vez, a cura dos exageros da pândega não cavou uma funda cova onde a cabeça condoída se deitara. Era como se um tremendo peso tivesse sido desembaraçado de cima do corpo.
Nem o frescor matinal invadindo o quarto o convenceu a agasalhar o torso desnudado. Entregou-se assim à janela exposta, sem o menor arrepio. Inspirou fundo, o mais que pôde, enquanto fechou os olhos. Ficou de olhos fechados algum tempo (não sabe quanto). Sem frio, ainda sem frio. Notou que a luz que entrava no quarto não se iria demorar: nesta fase da invernia, o sol é efémera visitação ao quarto, esconde-se depois de um punhado de minutos. Aproveitou para perceber como a luz clara emagrecia ainda mal a manhã se fixara. No seu quarto, o ocaso era cedo.
Não se amedrontou, nem atribuiu significado à luz que se ausentava velozmente. Quando a luz clara deixou de honrar o quarto, estava sentado na cama, com os cotovelos deitados sobre os joelhos, quando confirmou a transfiguração. Podia ter sido uma fina claridade. Um lampejo. Chegara para mudar as lentes por onde decantava o mundo à sua volta. Tudo era novo. Tudo era uma reinvenção do que fora matéria sombria.
Do lampejo da claridade sobrou uma semente de amanhã. Tão clara e perene como a claridade que destruíra as imposturas que foram suas tiranas.

27.2.13

Na boca do lobo


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Era uma daquelas noites frenéticas. O corpo ou o pensamento – não sabia o que rodopiava mais depressa. O que sabia era da vertigem que notava ao acelerar um gesto, ou quando um repente desalfandegava palavras que não deviam ter crédito. A noite frenética cobria o sono de pétalas florescentes, tão garridas que os olhos não conseguiam desatar a insónia.
As horas agigantavam-se e a noite parecia eterna. As flores dos canteiros tinham o formato arranjado das floristas que encenam a sua virtuosa exposição. Nem por ser de noite as flores se resguardaram em seus casulos; mostravam as pétalas desnudadas e o aroma que não deixava indiferença entre os que por lá passavam. As lições sobre a fotossíntese não serviam naquela noite, as flores tratando de as negar com o mesmo alarido que se montara nas ruas circundantes.
Ele dizia que a cidade estava em festa, mas não sabia os motivos aparentes. Ia de rua em rua, beberricando de bar em bar, conversando com este e aquele, sempre forasteiros do seu conhecimento. Não se lembrava das conversas, mas das gargalhadas ensaiadas com os compinchas de circunstância, ah!, disso tinha memória. Os lampiões apareciam difusos aos olhos, as luzes que deles emanavam cegavam os olhos estonteados. Numa das incursões do olhar pelo céu ainda mergulhado na penumbra, jurara ver uma estrela cadente. Teorizou sobre o momento, tendo por companhia um desempregado a curar a ressaca com outra embriaguez. Saiu da conversa com créditos de filósofo. O desempregado diagnosticou, seguro de si: “eu sei bem do que falo, já li uns cartapácios de filosofia.
Já ia demorado o cocktail de mistelas. Ao sentir as pernas sem forças, num cambalear que desautorizava a vontade, tomou a resolução de beber o último whiskey. A cabeça enfim sonolenta prometia confirmar a lei da gravidade. Antes que a alvorada agitada fosse testemunha do acordar ao relento, com uma cefaleia consumindo os corredores do cérebro, chamou um táxi. Entrou em casa, deitando-se no sofá sem despir a roupa enxovalhada da noite que acabara de findar. O dia que já o era não seria dia de vivalmas (para ele). A noite desenfreada seria caução de cura demorada.
Acordou já era madrugada do dia depois. Domado pelas olheiras e mortificado pelo descabelamento, perguntou ao espelho se a antevéspera tinha deixado legado. Demorou algum tempo, inerte, à frente do espelho. Só depois encontrou troco para a dilacerante interrogação: “ora, isso não interessa.” 

26.2.13

Na intermitência do tempo


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Nas alturas em que não havia empreitada endiabrada, era como se a poeira se resguardasse do vento irascível e conseguisse obter poiso. O vagar aterrava no travesseiro, salpicava o sono com sonhos em ausente sobressalto (ou sem sonho algum) e a alvorada não era a ignição de uma maré viva que atravessava o dia inteiro.
Mas estas eram as intermitências do tempo. Quando espreitava sobre o ombro e puxava a meada ao passado, tinha a impressão que os idos de calmaria eram o oásis que rasgava o largo tempo tingido pela desavença dos sentidos. Nem assim era diferente o viver. Concordava com quem lhe dizia que precisava de deixar a imorredoira teimosia do destempero. Ele achava que era ingrediente necessário da rebeldia – e prezava muito que os demais de si achassem tratar-se de um rebelde.
Não pedia licença aos pergaminhos para entrar numa boa polémica. De preferência, a provocar. Para mal das rotinas de que se sentia sitiado à falta de errância por uma causa estouvada, as ruturas davam-lhe prazer. Discursava com elegância, mas em tom inflamado, quando era preciso meter agulha nas ideias feitas, nas convergências metidas a eito para travar as “perigosas divergências”. Não se importava de não ser amado. Não se importava de maçar a gente serenada, os tutores dos bons costumes. Ficava em êxtase ao despejar a artilharia toda em cima da letargia como forma de ser. Incomodado com os pequenos tiranetes que, pé ante pé, se disfarçavam de bons educadores ao insinuarem que há dissidências que soam a sociopatia. Pois então: queria ser um sociopata. Amigos havia que aconselhavam a levar o ativismo provocador para o tempo que se demorava. Que deixasse à intermitência do tempo a eloquência ensandecida de que bolçavam as armadilhas excruciantes.
Talvez possuído pela derradeira loucura, convencera-se que a sociopatia de que vinha acusado era uma intermitência do tempo. Não deu conta que a idade passara e a madurez lograra seu templo. Seria surdo para o apelo sedativo da circunspeção. Não dando conta do embaciamento dos sentidos, não admitiu que as aventuras tresloucadas foram emolduradas na intermitência do tempo. Era um sinal, porém não admitido, do tempo indomável.

25.2.13

O muro atilado


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Jurou que tentara todos os esforços. As metas, que na altura não curava de saber se eram ambições sem alcance, não eram desembaraçadas. Das vezes que tentara havia um muro por diante, as paredes tão altas que não era dada permissão para o ultrapassar. Não o era à força braçal: os muros que entreolhavam quando o horizonte despontava o epílogo da proeza eram paredes imensas, pedras carcomidas pela corrosão das chuvas, o musgo brotando dos interstícios das pedras para emprestar humidade ao muro. Se havia muros não exageradamente altos, que pareciam tarefa menos árdua, o musgo que neles medrava era cancela irremovível. As mãos escorregavam, os olhos metendo-se na penumbra do cansaço de cada vez que a teimosia julgava derrotar a armadilha invencível.
Quando recuava na intenção, convencia-se que o muro era uma atilada barreira. Se aparecia por diante, tolhendo as metas que naquela altura ganhavam espessura de ganância, o muro tinha as suas razões. Convencia-se, talvez para amenizar o travo azedo do revés, que o muro impedia uma possível catástrofe. Podia ser que do outro lado do muro estivesse a vertigem de um abismo. Metia os mãos nos bolsos, amparando o corpo arqueado pela canseira, orquestrando um sabor doce ao que era estruturalmente azedo. 
Nunca chegara a saber, das vezes em que esbarrou em muros, o que estava do lado que o muro não deixava ver. Quando partira com o rumo vicejado pelo desconhecido, só as incógnitas eram adquiridas. Tratava-se de uma corrida no escuro, tateando as paredes para desarmadilhar os imprevistos que fossem aparecendo. Nada era projetado: o corpo aventurava-se sem rumo pensado. De permeio, uns laivos de luz clara deixavam o sol à mostra. Mas depois havia sempre um muro. Um muro atilado – não fosse o destempero do desengano consumir as forças sobrantes.
Quando vinha o dia do restolho, ainda o corpo se condoía pelo muro invencível, a filigrana da alvorada curava os desatinos da inconsequência. Era preciso um muro para admitir os passos em falso, a lucidez que se ausentara quando mais era precisa. O muro, o atilado muro, era onde encontrava a bússola que não sabia sumida.

22.2.13

“Eu sou uma ilha”


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Sou um território minúsculo. Só vejo mar à minha volta. E, todavia, não sou invadido pelas águas corrosivas, não deixo que o salitre se insinue na ossatura que é meu salvo-conduto no meio do mar.
Vejo-o, o mar, de todas as formas e feitios, os dias seguidos. Quando a bonança vem encavalitada no anticiclone, o mar faz-se chão. Convivemos, trocamos palavras de circunstância, umas vezes. Noutras vezes, quando o mar entristecido mal consegue bater nas pedras gastas que me protegem, quer que seja seu confessor. Debita a amargura que o consome – talvez porque foi habituado a ser tratado com respeito, o mar assim alcandorado ao trono onde é indomável. Dessas vezes, tão chão, nem consegue respingar umas lágrimas que se vejam para rimar com a melancolia que dele se apoderou. Coriáceo, dou ouvidos aos lamentos.
Algumas vezes o mar me pediu conselho. Mas eu sou mau a dar conselhos. Devia ser o mar a dá-los, os conselhos. Porque eu nasci ilha e ilha hei de partir sem memória. A insular condição é irremediável. Tal como ao mar alinharam o indomável atributo, de mim, ilha que sou, diz-se que fui feito para apascentar a solidão. Não há ilhas à minha volta, sequer. Ilhas que pudesse namorar de longe, arroteando um amor platónico que ao menos servia para dissolver a monotonia da solidão. E não choro, não por falta de lágrimas como ao mar acontece quando está tão chão. Não choro porque, pétreo que sou, não me foi concedida a graça das lágrimas. Ganhei reputação de duro por suportar as fúrias do intempestivo mar quando, derrotado o anticiclone, ele se renova desde o fundo mais fundo e se atiça com ondas majestosas contra os meus contrafortes.
A solidão ensinou-me a não ter medo do medo. Nem quando as ondas se esmagam com estrépito, ou quando ameaçam submergir-me num abraço medonho. Eu sei que as tempestades passam. Aprendi a passar os dias tingidos pelas tempestades. Aprendi, até, a conviver com o mar quando ele vegeta no esquecimento e me atemoriza com o seu desarranjo tempestuoso. Sempre me disseram, desde a tenra idade em que as evocações chegam à memória, que uma ilha tem de ser uma fortaleza inteira. Imune às contingências. Sagaz na sobrevivência. E tutora da solidão.
Porque, numa ilha, a solidão não tem o sentido dos lugares onde a solidão faz sentido.