10.1.13

O ladrão de identidades


In http://www.cochinsquare.com/wp-content/uploads/2009/05/burgler1.gif
Era nómada de terras estranhas. Sem paragem certa, deambulando por onde se alinhavassem as errâncias acertadas. Tinha um só propósito: visitar ruas apinhadas em cidades densamente povoadas. E um dom que era sua incurável doença. Assim que fixava os olhos numa pessoa estranha, apropriava-se da sua identidade. Até dela se cansar e, ato contínuo, os pés açambarcarem o cimento dos passeios e alistar outro alvo.
Às pessoas tomadas não vinha grande mal. Não perdiam a identidade, não eram desapossadas do ser. Nem sequer a personalidade ficava diluída; não havia efeito de transferência, como se de dois copos se tratasse (a pessoa esbulhada perdendo laivos de personalidade e ele atuando como parasita que se alimentava do sangue sorvido aos hospedeiros). As vítimas apenas sentiam umas breves cefaleias, um momentâneo arfar que pressagiava um vazio interior. Depois regressavam ao seu, pleno, eu.
Se alguém tomasse conhecimento deste dom, e se alguém o denunciasse às autoridades, como não seria acossado... E, no entanto, se as pessoas soubessem que este dom é uma punição de que não se conseguia desfazer, talvez os supostos perseguidores se enchessem de comiseração. Não era fácil encarnar diferentes personalidades na voracidade do tempo. Não havia, neste demorado nomadismo de identidades, uma identidade que quisesse ter durado para além das habituais vinte e quatro horas. Meter-se na fatiota do que eram as pessoas invadidas era de uma violência sem par. Viver por dentro angústias que não eram suas, chorar as lágrimas pelas dores que as causavam, as alegrias antolhadas, a maldade incorrigível, a genética apetência para cuidar das coisas complexas desviando o olhar das que vinham ungidas de simplicidade. O pior dos males eram as cicatrizes debruadas pela amaldiçoada dádiva. Repor uma identidade por outra deixava para memória futura os traços da identidade substituída. E assim sucessivamente.
Um dia experimentou a negação do nomadismo. Refugiou-se no quarto do hotel por três dias a fio. Fora uma tortura de como não há memória. Nunca se sentira vazio, despojado de uma identidade. E nunca estivera tão perto de ser um autómato possuído por instintos maquinais.

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