17.12.12

Era uma vez um contador de histórias


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Ele tinha duas peles. Às vezes, três ou quatro – as que fossem precisas para desembaciar a penumbra que atasse histórias furtivas. A rua era um manancial rico. Era só observar à volta, ver as pessoas na sua ladainha diária, ou escutar uma conversa vizinha no metro, ou ver o mundo a passar à frente numa mesa de café, ou à mesa de uma esplanada enquanto o mar por diante se oferece musa inspiradora.
O contador de histórias era um narrador de vielas por onde se emaranhavam vidas que desconhecia. Um singelo fragmento servia para montar uma história arrancada a ferros. Era um exercício violento. Na segunda pele, envergada à procura de ser ator em corpo desconhecido, sentia dores que não eram suas, fortunas em si forasteiras, fazia de conta que era quem não era. Era como se a existência fosse pequena de mais para o pensamento em que não tinha freio. Transbordava para as histórias que narrava, convocando em si os outros que, nem por não serem seus, em si repousavam só de desatar as urdiduras que impediam a história de chegar à boca de cena mediante palavra escrita.
Havia alturas em que a palavra emudecia. A imaginação hibernava. Podia arregimentar meia dúzia de episódios da atualidade para ficcionar enredos. Sábia saída. Mas a verosimilhança de personagens não apetecia a construção de enredos. O contador de histórias preferia a lhaneza da gente anónima, da gente que jamais conhecera e que, apostava, jamais viria a encontrar depois de se ungir com a inspiração que vinha dessa gente. Não deixava de se sentir um intruso ao absorver fragmentos dos outros.
Às vezes perguntavam ao contador de histórias se uma ou outra tinha laivo autobiográfico. Dizia que as histórias pertenciam sempre a outras pessoas. Ele só se apropriava das personagens anónimas e dava-lhes roupagem que vinha de dentro da sua fantasia. Ele era só um modesto arquiteto dos sentidos cerzidos com as palavras que ajuizava certas no instante em que se vertiam em forma de letra.

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