31.12.12

Trinca espinhas


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDBZN_IQiB_X9t5QQ10ccn1I7_bWIYqtE8YHIZsp-aUAd9dyR252PRtTaQmA_JQhrIOYG_dF1gLobgGZJB-q9XJ_LVeKuuz4F5b74eW2n-6EFdXsRPWqw0r_5fFpy62uX1-RfuTQ/s1600/Andreia+Ribeiro5.jpg
(O Público pediu a uns peritos para darem palpites sobre a sociedade que aí vem em 2013. Este é o meu ato volitivo dando seguimento à demanda)
Apesar dos clamores da rua e dos partidos extremistas (e de umas fações extremistas de partidos habitualmente moderados), não será em 2013 que vamos dizer adeus à crise. Pode a receita estar mal confecionada, que pareceria lógico, se o governo fosse liberal, emagrecer o Estado para não emagrecer a população e as empresas. Lamento desmentir os habituais críticos, mas este governo não é liberal: aumentos de impostos são património genético do socialismo.
Por uns instantes, farei de conta que ando de braço dado com aqueles críticos. Em mantendo-se a austeridade, é o caminho acelerado para sermos um país em vias de subdesenvolvimento. Uma nova categoria, cunhada pelo andar dos tempos e pelas circunstâncias. Já conhecíamos países em vias de desenvolvimento, eufemismo simpático para denotar países pobres. Agora passam a figurar na escala os países que caminham para o seu próprio subdesenvolvimento. Ditado pelo empobrecimento das pessoas, porventura um desígnio incorporado por governos em funções.
Configure-se a sociedade em conformidade com as dores apocalípticas dos árbitros das conspirações. Daqui para a frente tudo na economia será comprimido à escala do minimalismo. Seremos todos trinca espinhas, condenados ao emagrecimento das posses e, por essa via, do consumo e do entesouramento. E por aí fora: as empresas também vão emagrecer à míngua de consumidores, libertando mais gente para o exército de desempregados. Com sucessivas repetições do ciclo. Talvez isto só venha a parar quando já não houver sociedade para contar a história às gerações vindouras. Estes sacrifícios impostos de fora para dentro, um autêntico entorse à soberania nacional, são um genocídio da portugalidade em geral e dos mais remediados em particular.
Todavia, o mau feitio não me deixa concordar com esta gesta tão clarividente e senhora dos seus imperativos categóricos. Pergunto-me, em jeito de balanço que é ao mesmo tempo figura de estilo deixada para o ano que aí vem, se o emagrecimento não é a cura necessária para anos a fio de deslumbramento para o qual não havia alicerces? Custa perder regalias, oh!, se custa. Mas talvez seja necessário para voltarmos a ser alguma coisa que não seja uma sociedade alienada e condenada a viver sob o penhor da maresia das ilusões.

28.12.12

O contador (frustrado) de histórias infantis


In http://t0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcR0huCjC4v-fZNJiS-STBPdQcwjhxm7VkZw-UzE-MZW-Bkns0rFdvZ5sMFU
A imperícia não saía da cabeça: por mais que tentasse, por mais que quisesse imitar certos vultos da literatura que ensaiaram contos infantis, escorregava para a palavra hermética que os mais novos não haveriam de entender. Quantas folhas de papel alinhavadas com histórias infantis desaguaram no lixo?
Às vezes, quando germinava uma ideia a preceito para um conto infantil, juntava meia dúzia de crianças e as palavras começavam o seu débito. Não seria do ar infantil que punha ao narrar o enredo, que os petizes não são sagazes para perceberem o tratamento infantilizado que combina com a audiência. Só podia ser do desinteresse da história; as crianças não demoravam a desmobilizar a atenção – um bocejo aqui, uma cabeça coçada várias vezes ali, a desatenção aviltando a solenidade que o esforçado contador de histórias suplicava, para seu bem-estar.
Talvez o mal estivesse na sua muita erudição. E de querer trazer tanta erudição para a escrita. Os textos eram intratáveis, punham o leitor mediano a léguas. Mas ainda se descontava que a literatura adulta afivelasse o hermético – ele não há tanta literatura que se distingue pela linguagem elaborada? Contaminado pela verborreia vertida em literatura, as tentativas de conto infantil levavam com os mesmos vícios: o raciocínio elaborado, a palavra aqui e ali desconhecida dos infantes que a lessem, finais de história a despropósito. Quando insistia em oferecer nacos destas histórias em declamações feitas pelo próprio, as crianças, genuínas como mais ninguém é, não tardavam a mostrar a indiferença e, caso ele insistisse, o desprazer. Ouviu uns vitupérios de uns rapazes impertinentes que havia açambarcado numa atividade extraescolar arranjada pela namorada que lá era professora. Um deles disse, alto e bom som, “dedica-te à pesca que não tens jeito para contador de histórias”.
Ficou três dias sem sair da cama. Nem as piores críticas à outra literatura doeram tanto como aquele desconchavo tão ofensivo. Mas há males que contêm a sua própria cura. Foi o remédio para deixar de vez os ensaios da literatura infantil. Percebeu, nessa altura, que não seria acaso a paternidade nunca o ter sondado.

27.12.12

Maré tingida


In http://www.canarynet.com/fondos/oleaje-800.jpg
Estremecimento. Um abalo telúrico a cindir-se com as nuvens que emprestavam escurecimento ao céu. As águas orquestradas pela maré espelhavam os mesmos sedimentos de outrora. Uma pergunta assomava entre a espuma das bravias águas do mar: as marés são uma antecâmara de amanhãs, como se fossem um presságio assinado com o fermento de um outrora?
O estremecimento ecoava as ondas de choque do terramoto interior. Podiam ser apenas os fusos horários do entendimento desfeito em equívoco, e o entendimento já embaciado. A condizer com o dia londrino, o nevoeiro perpetuando a escuridão pela manhã fora. Às tantas, as interrogações que se sobrepunham esmagavam-se contra a porta férrea onde estavam em sobressalto os pensamentos. Uma das interrogações, a mais preciosa, desafiava a intrepidez do abalo telúrico que desapossara o mar chão. Era a vez das ondas chegarem ao areal numa fúria avassaladora, fundindo-se nas rochas erodidas.
A descompostura dos pensamentos convocava serão em demanda de lucidez. E mesmo que soubesse que da errância noturna não esboçava a intuição cobiçada, meteu os pés às ruas. Precisava de alquebrar a febre que vinha do assalto das interrogações incessantes. Precisava de estugar o passo nas ruas movimentadas, encontrar um promontório onde o pensamento febril, sozinho, contemplasse as luzes que não adormeciam. A embocadura do mar, onde outra maré que parecia repetitiva molhava as rochas e o areal, seria o tribunal supremo. Podia ser que a maresia desatasse os nós que pareciam amarrados por marinheiro experiente. Podia ser que a noite branca resgatasse a claridade que andava a monte, turvada pelas nuvens pesadas que sobressaiam no céu colonizado pela noite escura.
Entre os néon nada clarividentes e a traficância noturna, as palavras embotadas na maré enfurecida dariam respostas. Seriam respostas sem acerto, um caldo de ilusões em que marejavam os olhos das tágides companheiras dos pensamentos amotinados. Mas nem isso interessava. Só a fechadura de onde seriam devolvidas respostas. Já incensadas pela penumbra em que se depunha a madrugada.

26.12.12

O burlão conveniente

In http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2012/12/129_2418-alt-arthur%20Baptista%20da%20Silva.jpg

Mote: ladrão que rouba ladrão merece cem anos de perdão (que se transformam em mil se o ladrão roubado for o terrível neoliberalismo)
Ironias. Andou por aí, entre páginas dos jornais, respeitáveis conferências onde só gente ilustre é convidada para keynote speaker, e debates na televisão, um burlão que trazia atrás de si as credenciais das Nações Unidas, de que era suposto consultor. E como as ideias que professava soavam como melodias a um largo rebanho que se atira furiosamente contra o (também suposto – mas agora sou eu a ajuizar) neoliberalismo que empobrece propositadamente as pessoas, o senhor adejou umas breves semanas com aura de catedrático. Afinal era apenas um burlão, mais um na terra dos Vale e Azevedo, de autarcas que enriquecem por graça de magias não circenses e de dirigentes desportivos que são peritos na adulteração da verdade desportiva.
Era matéria para um compêndio, saber dos interstícios mentais que levam alguém a aparecer como algo que não é. Gostava de travar conhecimento (mas deixo para quem saiba da poda) com os corredores mentais desta gente, saber se vivem por dentro de uma mentira sem dela darem conta, se estão doentes a ponto de considerarem que o resto do mundo é uma mentira pegada, ou se não avaliam o risco de serem apanhados em contrapé e devolvidos à risível figura que são depois de alguém os desmascarar. Ser burlão de identidades (como este falso professor e consultor internacional de prestígio foi) deve ser, imagino, como andar todos os dias com a corda à garganta quando se é traficante de drogas, ou quando se anda foragido da justiça. Assim como assim, quem não conhece mitómanos de si mesmo?
Mas é a ironia que me interessa. Fico emocionado com as cambalhotas argumentativas dos efémeros cultores do burlão (antes de ser acantonado a tal condição). É pena que lhe tenham tirado o palco e que já não possa abraçar às ideias convenientes a autoridade intelectual dos cargos que falsamente ostentava. Foi-se o burlão, mas mantêm-se certeiras as ideias que vão contra o (outra vez suposto) “pensamento único” que contestam com tanto fervor. À espera que saia da toca outro guru conveniente.
Saia um D. Sebastião para o canto esquerdo da sala.

25.12.12

Bolo-rei é o que o homem quiser


In http://www.acorianooriental.pt/image_cache/images/view/_video/16003.jpg
A quadra que atravessamos repete hábitos, é um lugarejo conservador. Ele são os circos, os natais dos hospitais, as comezainas que enfartam, o coro de Santo Amaro de Oeiras, as prendas inúteis, as roupas que brilham, tão novas, no dia de Natal, o bolo-rei. Como o homem precisa de reinventar hábitos (não seja vergado pelo peso da rotina), até os natais começam a ser diferentes. Andamos cansados da receita tradicional do bolo-rei, ou há pessoas que já a enjoaram; peça-se emprestada a criatividade dos gastrónomos para servir de inspiração aos pasteleiros.
Ele há bolos-reis para todos os gostos e feitios. Sem frutas cristalizadas, não vão os comensais natalícios temer que o seu porvir, que se joga nas promessas solenizadas dentro de uns dias quando for o réveillon, se cristalize na modorra. Ele há bolo-rei de chocolate, porque estes tempos de sacrifício convocam compensações adocicadas. Para rimar com a quadra, que também se esmera no nonsense, há reinterpretações do bolo-rei. Ele é o bolo-rei de castanhas, o bolo-rei macrobiótico, até um bolo-rei ornamentado com pétalas de ouro comestível. À laia de chefe de cozinha aureolado no estrangeiro, daqueles que usam prosápia para descrever as criações gastronómicas, eis algumas propostas de bolo-rei alternativo:
- bolo-rei campestre: massa de folar de Páscoa recheada com carnes diversas dos fumeiros gourmet, cobertura de molho de frutos silvestres e polvilhado com canela em pó.
- Bolo-rei marinho: massa folhada levemente sovada (fermentação prolongada), recheio de polvo cozido com estágio em salmoura de caril, e cacau da Guatemala ungido com vodka preta.
- Bolo-rei das arrelias: massa típica de bolo-rei em segunda mão (ressequida em grau três), pedaços de hortelã e cominhos, raios de sangue de porco, mel de urze e infusão de bacalhau cozido em azeite a 64 graus durante uma hora e dezassete minutos.
- Bolo-rei Nietzsche: embrulho para prenda contendo dois quilos de farinha peneirada, fermento padeiro q.b., ovos de galinha campeã, frutas secas de primeira escolha, água de Evian e açúcar mascavado da Colômbia, com serigrafia de Joana de Vasconcelos com instruções de confecção ilustradas.