24.10.12

Os gatos são o penhor dos poetas


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Não é epitáfio a Manuel António Pina, que partiu há dias. Ou epitáfio tardio a Eugénio de Andrade, T. S. Eliot, Jorge Luiz Borges, Pablo Neruda, W. B. Yeats ou Jean Cocteau. Nem epitáfio a todos os poetas defuntos que viviam com gatos, que faziam questão em surgir emparelhados com gatos. É, talvez, uma modesta ilação. Que há poetas que trazem de perto a inspiração de gatos. Como se os animais tivessem um dom que se transmite aos poetas, um sossego que alimenta a amálgama de estrofes que os poetas seus tutores compõem. Se calhar, os gatos é que são os tutores dos poetas. Eles, que cultivam a independência, ensinam a maior das liberdades – a liberdade de espírito. Os gatos são os donos do tempo dos afetos. Às pessoas é inútil forjar afetos quando a vontade dos gatos não quadra. E o que tem isto a ver com os poetas? Tudo. Não são eles os espíritos desassombrados? Não se encavalitam em promontórios alcantilados porque a monotonia corta cerce e vem a convocatória do desassossego? Não são os poetas os espíritos embebidos na mais densa liberdade (a de espírito)? Os poetas não arqueiam o corpo perante os dias que são iguais. É como se alguém lhes partisse a espinha, metendo as suas mãos dentro de algemas que impedissem a escrita. Aos gatos – aos gatos que não têm pergaminhos caseiros, aos que não foram domados pela preguiça do conforto – não há quem os sitie entre quatro paredes. Saltam jardins, espreitam entre a nesga de uma janela entreaberta, investigam os lares que desconhecem. Esquadrinham os jardins, aventuram-se nos bosques, às vezes cismam viagens que os levam para longe. Os olhos vivaços de um gato são como a pena acutilante do poeta. Aquela que decanta os sentidos caóticos e os transforma em palavras, ora dóceis, ora enfurecidas, em estrofes prisioneiras (ou não) de métricas e rimas. Aos gatos, como aos poetas, a ausência de regras como leito de uma anarquia sem impurezas. E sim, os poetas é que são como os gatos.

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