31.7.12

Between a rock and a hard place


In http://meioambiente.culturamix.com/blog/wp-content/uploads/2010/05/315.jpg
O habitat hostil. Flagelado por ventos impossíveis. O gelo amontoado, sinal da dura invernia. Ou o sol impiedoso na curta, mas feroz, estação estival. Chamam-lhe deserto. Não haveria senão mortos-vivos dispostos a habitar naquele lugar. E, todavia, por lá andava o homem rude. Teimosamente residente, impassível perante as travessuras dos elementos. Selava o exílio interior. Desaparecera de onde sempre fora. Não deixara rasto. Os que lhe eram queridos davam-no como desaparecido. Quase todos, no seu íntimo, desconfiavam que perecera sem se saber como. Só um punhado, entre os que ainda dele se lembravam, julgava que resistia algures, porventura sem motivos para dar conta da existência.
Lá longe, naquele sítio onde ninguém cuidava de habitar, persistia o homem rude numa peregrinação de isolamento. Quando aparecia vivalma – um caçador extraviado, um tresloucado perdido na sua errância, ou um explorador embebido no sacerdócio científico – refugiava-se num punhado de rochedos inacessíveis. Não queria conversa com gente.
Um dia, um explorador extravasou a curiosidade científica. Insistiu, irritantemente, em estabelecer contacto. O homem só quisera refugiar-se em lugares que decerto o teimoso explorador não saberia tactear. Pensou melhor. Se fosse correspondente na procura de comunicação, podia ser que saciasse a curiosidade e o assunto encontrava pedra tumular. Não inibiu o desconforto. Não escondeu desprazer, inquietação, antipatia. Mentiu com todos os dentes. Contou ao explorador que era uma estadia episódica. À procura de si mesmo. O explorador satisfez a demanda. Não voltou a dar notícias. O eremita do lugar inóspito resgatara o alívio.
Nessa noite, apoquentado pela conversa que tivera, devolveu à procedência um ror de interrogações. Continuava sem saber o que causara exílio tão sacrificial. Era um buraco negro na memória. Desconfiava que o refúgio naquele lugar impossível era uma covardia apontada contra si. Os poucos que lhe puseram a vista em cima julgavam que ele era exemplo de bravura e ensandecimento. E ele discordava, por entre a autocomiseração pela memória omissa. Temia que dela sobejassem atos hediondos que o levaram à fuga do mundo inteiro. Não se chama a isso covardia?

30.7.12

O escritor sem prole


In http://pequenada.com/files/imagecache/artigos_full/artigos/ovos-da-pascoa-no-jardim.jpg
Divagava pelo jardim, os olhos retendo as pedras e as folhas que compunham o chão. Apurava pensamentos. Podia ser que encontrasse inspiração para o texto que um amigo tinha encomendado para o catálogo de uma exposição de arte impressionista. E logo a ele, que abominava o impressionismo. Mas não se recusa um favor a um amigo que abre tantas portas – continuava a convencer-se da ingrata tarefa, enquanto fazia contas à vida (havia contas a pagar e o rédito da incumbência não era de desprezar).
Os passos seguiam uma cadência lenta. O olhar perdido no firmamento aperaltado pelos calhaus e folhas levadas pela ventania haveria de trazer inspiração. Ao longe, sentiu algazarra infantil. Soergueu o olhar ao encontro do som estridente composto por gritaria e risos galhardos. Havia um parque infantil cheio de crianças. Estava no seu caminho e não se desviou. Ao início, hesitou. Ele sabe que não é dado a multidões de petizes, à galhofa pueril, à vivacidade inocente. Admitia a falta de sensibilidade. Não era por acaso que, à sua conta, a demografia não saía da curva difícil em que agonizava. Ser pai não fora vocação. E não era agora, já quase sexagenário, que a página do livro ia ser rasgada.
Sentou-se num banco a apreciar a folia infantil que ia nos escorregas e nos baloiços. Eram para aí duas dúzias de miúdos. Afogueados, o suor a escorrer das testas, em alguns a roupa já encardida de tanto rebolarem no chão apinhado de poeira. De atalaia, uma mão cheia de mães. Enquanto falavam entre si, deitavam um olho protetor às crianças em ávida consumição de folguedo. O grupo de mães deu ao volta e estacionou perto de onde ele se encontrava. Pôde escutar a conversa: uma rivalidade de façanhas dos petizes, um curso rápido de puericultura, mais os planos detalhados em cima do estirador para um porvir repleto de proezas dos meninos à sua guarida.
Meia hora depois, cansado de tanto berreiro e da vacuidade da converseta das senhoras, foi em demanda de outro sítio. Percebeu. O mister da paternidade exige um desprendimento de si que o seu egoísmo não admitia. Naquele dia, depois da amostra do jardim, não se arrependeu de nunca ter sentido a paternidade.

27.7.12

Arquitetos do tempo

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Ninguém se preocupa em viver bem quando, afinal, viver bem está ao alcance de todos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém”, Séneca, in Cartas a Lucílio.
De que servem as poupanças quando se açambarcam nos cofres do tempo? Julgamos que é a delongada existência que reverte a favor da grandeza. Soçobramos, se assim ajuizarmos, perante os mastins que só medem porções. A sua serventia é inofensiva se todos esses anos de duração, uma vez descosidos, deitarem à mostra um vazio.
Deitamos tempo fora com as munições do tempo que aí vem. Deitamo-nos com o tempo tirano, saltando pé ante pé por dias sem memória, só porque teimámos que depois de amanhã é que terminam as inquietações. E nem damos conta que as inquietações são uma epígrafe necessária. Caução das recompensas que sobram de marés contrárias. Se não fosse pelo travo amargo das inquietações, as recompensas teriam sabor apagado – deixariam de ser recompensas. Às duas por três, olhamos, inertes, para os relógios espalhados por todo o lado. E os ponteiros na marcha irremediável. Oxalá os amanhãs que se prometem no meio de nevoeiros de quimeras não sejam traição maior ao tempo.
O desgaste do tempo sem lembrança é suicida. Enquanto se varrem os vestígios de outrora desgasta-se o crédito do porvir. Só há um remédio. Arremate-se o tempo disponível. E o que é o tempo disponível? É o que está ao alcance dos dedos, o tempo que podemos agarrar. Agarremo-lo com a força toda das mãos. Seremos arquitetos do tempo que irrompe, encantador, a cada alvorada. Tomemos entre mãos os utensílios que esculpem o tempo à nossa volta. Deitemos a folha branca no estirador. E cinzelemos o tempo à nossa feição, sem cuidar das consumições da exiguidade dos instantes.
O tempo só é exíguo se o deixarmos escapar entre os dedos. Saibamos ser arquitetos do tempo que nos é consagrado para termos mão no fadário. Nessa altura, seremos divindades em nós mesmos.

26.7.12

É proibido ser de direita (um dia destes)


In http://img.photobucket.com/albums/v85/jumento/006/Direita-1.jpg
Aos gentios que tenham o atrevimento de ser de “direita” (assim mesmo, entre aspas, para contrariar a malta das esquerdas habituada às categorias homogéneas, arrumando todas as direitas – e são tantas e variadas – numa só gaveta): precatem-se. Se tiverem o topete de habitar na casa nefanda a que se convencionou alcunhar "neoliberalismo", cuidem-se. Que o senador-mor da república, o venerando que foi presidente em dois mandatos e queria ter outro mais, não tivesse a maioria dos eleitores a insolência de escolher um concorrente, há dias bolçou ameaça: se a Europa implodir por não saber sair desta crise, devem estes líderes sequazes, teimosos no "neoliberalismo" assassino, sentar o cóccix em Haia. No tribunal internacional penal. Acusação: crimes contra a humanidade.
Haja motivos circenses para alegrar os cidadãos, que estes são tempos tão árduos. E já que os jornalistas boicotam a vetusta personagem ao cozinharem notícias sobre os costumeiros disparates que se lhe soltam da boca em jeito de incontinência verbal (quando o melhor favor que fariam ao senador-mor da república era o silêncio sobre a sua prosa falada), insistem em pô-lo na ribalta pelas patéticas razões abundantemente documentadas.
Não fosse a patusca personagem estar xexé e quem não atinge a lucidez para ser de uma esquerda qualquer, devia meter a preocupação de molho. Imagino os corredores mentais do que gostaria de ser o novo Torquemada, não andassem já arredias as faculdades mentais e físicas. Os néscios das direitas (porventura com a exceção da fação democrata-cristã, devido à intermediação da consorte do senador) a converterem-se a uma das fações esquerdistas autorizadas. Ou condenados à clandestinidade, enquanto a força bruta da polícia não lhes deitasse a mão a caminho dos calabouços. Depois, julgamentos exemplares à espera. Nós, acusados do maior pecado de todos (“neoliberalismo”, ou lá o que é), encostados à parede por termos pisado as trevas ideológicas.
Talvez não fosse má ideia desatar um rosário de proibições: primeiro, os eleitores de direita; depois, os partidos de direita de irem a eleições; no fim de tudo, a ilegalização destes partidos. Então, o senador-mor da república podia fechar os olhos descansado.

25.7.12

Saltos altos (elogio feminino)


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Seria estultícia apoucá-las porque usam saltos altos e outros adereços que tais. Seria, ademais, do foro do politicamente incorreto. As feministas não tardariam a vociferar impropérios. Sobeja ainda outra factualidade: aos que gostam de mulheres (e nesta formula já se contempla flexibilidade democrática) caem bem esses adereços. Realçam a feminilidade. E se é de feminilidade que as hormonas e (vá lá, admita-se) o intelecto se enamoram, como podia alguém desdenhar dos adereços que emprestam uma graciosidade ímpar ao sexo feminino?
Há, contudo, umas impurezas que se metem pelo caminho. Nós, habituados a caminhar em sapatos rasos, terçamos a perplexidade só de imaginar como será montar em cima de tacões tão elevados. Ouvimos dizer a algumas resistentes (aquelas mulheres que não transitam no hábito do salto alto, sem, todavia, perderem a graciosidade própria do género feminino) que adestrar uns saltos altos bule com o equilíbrio. Suponho que estejam pouco habituadas a meter os pés nuns sapatos destes. Ele há por aí tanta donzela devidamente tirocinada na função sem lhes notarmos qualquer traço de desequilíbrio, que só se afere a recusa das resistentes por serem comodistas, ou por os gémeos não aguentarem a provação (física) dos saltos altos.
Dando de barato os depoimentos das resistentes ao salto alto, somos levados ao elogio do sexo feminino. O que elas passam para se aperaltarem, para não sentirem o enxovalho da estética. A crer nesses depoimentos, só uma dose polida de equilíbrio cauciona o uso de saltos altos. Como se pode então jurar que o homem é o sexo forte, se os varões não são adestrados para caminharem em cima de saltos altos?
Descontem-se as conclusões lapidares que levitam o cunho do tradicionalismo. Não interessa que os padrões da estética desviem o sexo masculino do salto alto como calçado da moda. A fuga masculina aos saltos altos é admitir que as mulheres nos levam a palma no que ao equilíbrio diz respeito. E não o proclamo para agradar à brigada de exaltadas feministas. É uma homenagem sentida (e desinteressada). Mesmo.

24.7.12

Os porteiros


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Não adianta análise sociológica amadora. Não adianta carpir a idiossincrasia de um povo. Nem adiantam fermentos em utopias que não passam disso mesmo – utopias. Mas há algumas embirrações que só de o serem personificam desprazer. Confesso uma: o complexo de farda. Um atavismo herdado dos tempos grotescos da ditadura. Quando ando em transportes públicos e as conversas dos passageiros vizinhos entram pelo ouvido sem que o possa evitar, são recorrentes as lamentações que evocam a ordem dos tempos da velha senhora. Farto-me de ouvir graciosidades como “no tempo de Salazar não havia estas poucas vergonhas”.
(Alusão à insegurança que, mesmo assim, coloca esta santa terrinha longe dos patamares de criminalidade dos vizinhos europeus – até nisso estamos atrasados; ou, talvez, sinal de uma inesperada vantagem civilizacional destes, que somos nós, frequentemente conotados com os derradeiros bárbaros da Europa).
Muita gente gosta de sentir a mão pesada do poder. Por causa da segurança, esse valor tão sagrado. Resignam-se ao braço duro – por vezes totalitário – do poder, se sentirem que é a fatura apresentada pela garantia de segurança. Não admira que muitos destes que continuam enamorados de um poder público forte transportem consigo um complexo de farda. É quando confundem poder com autoridade e depressa fazem um plano inclinado onde a autoridade escorrega para o autoritarismo. É a mais pura exibição de autoridade, com a sobranceria de quem se encontra por dentro de uma farda.
(As fardas tanto podem ser vestuário que entroniza o poder, como fardas simbólicas, o exercício de uma autoridade que, no entender enviesado dos seus titulares, confere direito a destratar os destinatários do poder.)
Os porteiros (nas repartições públicas, nos hospitais, à porta de bares e discotecas, nos aeroportos – e os demais exemplos que se possam arregimentar) são um paradigma. Mal educados, mal encarados, destilando pesporrência que quadra com o uso da farda e com a autorização, dada por alguém que manda, para serem eles a franquearem a entrada aos sítios de que são cães de guarda. Altivos, antipáticos, assertivos, puxando lustro ao arbítrio que é a ostentação do poder. São pequenos tiranetes sem trono. 

23.7.12

Mais olhos que barriga


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O modismo do empratamento todo pimpão, desenhando autênticas obras de arte com os ingredientes, uns molhos a preceito e outros adereços a comporem o ramalhete, é uma trapaça. Os olhos vão no engodo. Como se os chefes de cozinha que se dedicam à minúcia do vistoso empratamento quisessem adulterar o paladar através da anestesia do olhar. Ou talvez esteja tudo certo: a fazer fé nos sacerdotes que exortam a raça humana a desprender-se das coisas materiais e a entregar-se aos prazeres dúcteis da espiritualidade, o empratamento vistoso está para a espiritualidade como a gastronomia-empanturra-estômagos está para os vícios materiais. É preciso ter travão na boca, ou caímos nas doenças, que podem ser letais, alimentadas pelo excesso de alimento ou pelo descuido com o que nos alimentamos.
Não é só aqui que os sentidos andam às avessas. Em tantas outras coisas da vida (umas boas, outras rotineiras), os olhos são gulosas entidades que levam outros sentidos (depende do assunto) a sentirem-se atraiçoados quando são convocados a exercitarem o seu préstimo. O olhar é um filtro danoso. É uma credencial de expectativas que, tantas vezes, resultam num ato fracassado. Os olhos assim, fautores de enganos nos demais sentidos, são mordazes criadores de esperanças.
Dir-se-á que o problema não é dos olhos. Eles retratam o que é dado a ver. O dedo deve ser apontado aos fariseus que engalanam as coisas vistosas que seduzem os olhos. Quando assim é, desconfia-se: quem tanto ornamenta o exterior para atrair os olhos que se embevecem com todo o encantamento, é porque sabe (mas não confessa) que o produto é de fraco jaez.
Regresso ao empratamento fanfarrão que faz moda na culinária. Os olhos vão no feitiço. É um sentido que agradece. Mas falta o resto. Um certo sal a temperar os sabores. Os olhos, esses, já deviam ter aprendido a não fabricar embustes para os outros sentidos. Não é obras de arte que o paladar tenciona degustar.