12.1.12

Pesadelo tonitruante


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As cinzas descompunham-se com o vento deposto nos lençóis. No alpendre, libelinhas coloridas entoavam cânticos gregorianos. O cão, desconfiado com a ladainha, encolhia as gengivas e punha os dentes à mostra. Rosnava, enquanto a saliva coalhava a poeira que assentara aos pés da cama.
Pela porta do quarto entrou um cavalo sem cabeça. Troteava em compasso com a melodia entoada pelo coro de libelinhas. Os cascos rudes arranhavam a madeira fina do chão do quarto, cada prego que calçava os cascos a rasurar a preciosa madeira. Mas o homem não se importava. Aquele pesadelo tinha os folhos de uma catarse. Era como se fosse imperativo mergulhar demoradamente a cabeça em água purificada, arremetendo contra a apneia até ao limite. Ao vir à tona, a água entretanto engolida a meter-se nos poros dos pulmões, tossia. E a cobiçada purificação a crescer pelo corpo até se meter na mais profunda ossatura. Um cavalo despojado de cabeça assistia ao processo, como se fosse possível algo testemunhar se nem olhos assomavam à cabeça decepada. Era, contudo, o curador da catarse esquadrinhada através do pesadelo aterrador.
Um peixe fugido às masmorras do aquário debatia-se no seu estertor, rabeando contra a morte. Uma pequena bruxa, em tirocínio para o porvir, porém já ritualizada na maquilhagem ensombrecida e na roupagem negra, dedilhava o rabo da vassoura enquanto ostentava um sorriso cínico. Esperava que a vertigem do pesadelo tivesse um fundo de onde o homem não se resgatasse. Ninguém teria a ousadia de lhe dar uma mão. O homem estava por sua conta – e em serventia do contumaz pesadelo. A pequena bruxa apanhou uma reprimenda da mestra. No olhar severo, percebeu que não era função praticar infâmias. Desviou o olhar para o cavalo descabeçado. Era a ordem, a silenciosa ordem, para devolver a cabeça ao cavalo.
Do pé para a mão, o cavalo já na posse da cabeça ruminava a relva arrancada de um prado vizinho. A poeira evaporou-se. O peixe, pelo seu pé, arranjou força para regressar ao aquário. O cão adormeceu, limpando com a língua a saliva derramada na colcha, enquanto as libelinhas voaram para nenhures. E o homem acordou, coberto de suor. Mas retemperado. 

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