7.9.11

Diário de bordo


In http://garatujando.blogs.sapo.pt/arquivo/tempestade%20no%20mar
As cortinas escondiam a escotilha do exterior. Eram inamovíveis. Não deixavam espreitar a claridade do dia – nem que a claridade do dia viesse empenhada no estertor das manhãs embaciadas pelas nuvens plúmbeas, o estertor que se adiava pela tarde fora. Anotava no bloco de notas algumas ideias avulsas. Podia ser que no apanhado de palavras dispersas descobrisse um fio condutor.
Depois da claustrofobia do apertado camarote, as pernas percorriam as ripas matematicamente alindadas do convés. Por dias a eito, apenas as águas do oceano por companhia. Às vezes, um peixe audaz que parecia cansado da imersão marinha ensaiava um salto mortal, mostrando-se aos olhos dos marinheiros que, indiferentes, continuavam com as suas lides. Houve dias de mar ameno – dir-se-ia que era possível nele deitar uma mesa de xadrez sem perturbar o equilíbrio das peças. Houve dias de mar desarranjado, carrancudo, agreste. Os dias escorriam lentos, como a marcha vagarosa do navio. A certa altura, o mar, de tão imenso, a maior claustrofobia.
De tanta serventia de tempo disponível, os pensamentos foram revistos, as memórias postas em ordem. Mas tanto era o tempo sem serventia, que de tanto alinhavar os pensamentos e rever as memórias uns e outros começaram a perder nitidez. A páginas tantas, nem as gotas das ondas que transbordavam para o convés conseguiam trazer lucidez a esses pensamentos; as memórias pareciam embotadas, como se algum do passado se confundisse entre a espessura do acontecido e a fina camada dos sonhos.
As palavras dispersas continuavam a ser anotadas, meticulosamente anotadas, no diário de bordo. Podia ser que sobrassem uns vestígios aproveitáveis. Alguns dias volvidos, enquanto o mar alto demorava na paisagem, reparou que a clarividência das anotações parecia contagiada pela luz clara que beijava o convés. Ao contrário, as palavras desprendiam-se, pungentes, quando se recolhia no ar hermeticamente selado do camarote. A escotilha toldada pela cortina espessa não deixava filtrar a luz clara, e as palavras vertidas no diário de bordo perdiam o norte do fio condutor.
Dizem que o mar, o alto e quase infinito mar, é uma fonte inesgotável de criação. Tudo no seu contrário – sentira ao aportar terra firme. A terra é a mãe nutriente.

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