19.8.11

Etnografia boçal


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Era um programa televisivo, daqueles que se apanham enquanto esperamos quase eternamente num consultório médico. Um daqueles programas televisivos que têm a mania de levar até ao público as tradições populares. Mandam os obreiros do cimento da pertença colectiva que se perpetuem nas consciências para que não se percam pelo caminho.
Um indivíduo, presidente da confraria da matança do porco, estava a ser entrevistado. O gelatinoso mastim, com barbicha marxista dos anos sessenta e profusas cavidades onde outrora se alojaram dentes, descrevia os detalhes do “ritual” da matança do bácoro. Foi interrompido, uma e duas vezes, por um dos entrevistadores, talvez incomodado com o quadro realista oferecido, com excessivo entusiasmo, pelo presidente da confraria. Mas a bestial criatura insistia. Com detalhes que despiam os requintes de malvadez, ou não vibrassem tanto com o “ritual” os seguidores do dito. O homem estava nos píncaros da excitação. Ia jurar que o via bolçar uma escorrência qualquer pelos cantos da boca – talvez fosse a muita água na boca que se formava enquanto oferecia aos tele-espectadores os detalhes da carnificina.
Já perdi as ilusões que me fizeram residir, durante seis anos, na objecção de consciência de não comer carne. Mas ao menos podíamos usar o método da hipocrisia: fazer de conta, ou ao menos olhar para o lado, quando chegasse o momento de saber o que é preciso para que um naco de carne chegue ao nosso prato. Às vezes, a hipocrisia é o menor dos males.
Quando acontece o povo vibrar com as maldades cometidas em animais (na tourada, no “ritual” da matança do porco, em doentios maus-tratos a animais de companhia) sinto uma pulsão interior de contra-violência. Para vingar os animais servidos no banquete de espetáculos em que os aduladores dos mesmos caem na bestialidade maior. Alguns dirão, encolhendo os ombros, que isto faz parte da etnografia, uma espécie de código genético do que somos como “povo”.
Se isto faz parte da etnografia, se é este código genético tão antropocêntrico e primário, são pouco recomendáveis credenciais.

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