31.8.11

Crónica à MEC


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Este Agosto senescente, em ruptura com o almanaque meteorológico. A alvorada não trouxe os já quentes raios de sol; o tecto do céu, composto por uma cama de nuvens densas, a sitiar o dia sob a ameaça da chuva. Se tivermos como bitola os anos normais em que Agosto é o mês dos píncaros da canícula, este foi um Agosto timorato. As correntes atmosféricas puseram-nos à mercê da madrasta climatologia do analgésico centro da Europa.
Mesmo aqui (onde o peito se abre, corajoso, para as habituais nortadas que refrescam as temperaturas que uma dezena de quilómetros para o interior já são tórridas) costumava haver meia dúzia de dias de canícula com perfume ao deserto do Saara. Aquelas noites em que o corpo desnudado nem sequer o fino lençol aguenta. As noites mal dormidas acompanhadas pela sinfonia do vento que, sabemo-lo de cor, sopra de leste em presságio de abrasadoras temperaturas. Dou conta de mais um, entre tantos, paradoxos com que nos debatemos: esses dias de suar as estopinhas não deixam saudades. E, contudo, olho o mês de Agosto que por aqui houve e estranho a ausência de, ao menos, um par desses dias com sabor a Verão mediterrânico.
Os cientistas seriam convocados com o seu saber a dar resposta a esta interrogação: por onde anda o aquecimento global que ameaça liquidar o planeta? Diriam, talvez, que uma observação meteorológica regional não compõe uma regra nem desfaz uma tendência global. E diriam, ainda com mais persuasão, que um ano de excepção é isso mesmo, um ano de excepção. Um Agosto fora dos cânones não é sinal de que o aquecimento global se fragmentou no seu contrário.
Para o caso, pouco interessam as certezas da ciência (e as armadilhas do aquecimento global). O corpo estranhou um Agosto timorato, generosamente plácido por ausência de soalheira. O corpo só estranhou – como um norueguês teria estranhado um Inverno sem um floco de neve. Mas não se queixou.corpo estopinhas na do vento queato, generosamente pleu copntrnte ameaça liquidar o planeta? diria,as estopinhas na do vento que
Post scriptum: a partir de amanhã o novo acordo ortográfico passa a ser a norma.

30.8.11

O regresso do imposto da morte?


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Das duas, uma: ou o senhor presidente da república está em vias de fazer uma inversão de marcha rumo a uma esquerda qualquer, ou confirma-se que a personagem nunca me enganou e, atrás daquele véu de conservador que rima com direita, sempre esteve uma alma encantada com ideais esquerdistas.
A última descoberta opinativa de sua excelência é o resgate do imposto sucessório. Pelo caminho apresentou, naquela pose professoral que pretende garantir autoridade argumentativa, a explicação para voltarmos a ter um imposto sobre as heranças e as doações. Já vou à catedrática argumentação. Antes, um lamento: este economista engrossa a maré dos que deitam mão aos impostos quando as contas públicas sofrem um desarranjo. A criatividade é o limite para a invenção de impostos.
E qual foi o argumento para tributar as heranças e as doações? Um argumento básico: como os herdeiros não contribuem para a formação da riqueza que lhes é transmitida, tomem lá, paguem um imposto. O cobrador de impostos marca logo presença quando alguém fenece, estão ainda pesarosos com o decesso os familiares de quem partiu. E porque não houve contribuição para a formação de riqueza, isso legitima a usura fiscal. Por esta ordem de ideias, uma interrogação: e o cobrador de impostos por acaso deu algum contributo para a formação daquela riqueza?
Por este andar, fosse o imposto sucessório para a frente, os ricos e menos ricos tinham um incentivo para não formarem riqueza. Não acumulariam património nem poupanças nas mais diversas formas, pois o cobrador de impostos, qual abutre à espera de devorar parte do féretro, ia lá buscar o seu obsceno quinhão à hora da morte. Mais valia gastarem à tripa-forra – viagens sumptuárias, vestuário de luxo, restaurantes opíparos, e todos os demais consumos de ostentação que se possam imaginar. Ah, já percebi: sua excelência, o senhor presidente da república, quer que o consumo aumente para a produção ir pelo mesmo caminho. Quando se nasce keynesiano morre-se agarrado aos vícios de raciocínio keynesianos.
Lamento anunciar aos que das duas vezes se entusiasmaram com a candidatura do cidadão Cavaco à presidência da república: ainda não foi desta que a direita pôs um dos seus no Palácio de Belém.

29.8.11

O último postal islandês


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As línguas dos países nórdicos são ininteligíveis para um pobre falador de uma língua latina. Aquelas palavras intermináveis onde se atamancam várias consoantes seguidas são como agulhas que arranham a vista (ao serem lidas) e a audição (quando as escutamos). Ao que sei, os idiomas nórdicos são aparentados. Mas o islandês consegue levar a palma na bizarria. Quem não se lembra do nome impronunciável daquele vulcão que manteve os aviões em terra durante largas semanas? O mais irritante era o à-vontade e o sorriso de escárnio dos nativos quando eram desafiados a pronunciar o nome do vulcão e a palavra se soltava numa fracção de segundos – e como era possível aquele interminável nome ser dito em tão pouco tempo?
Ao andar pelas ruas era habitual esbarrar em cafés e restaurantes com nomes que eram uma composição (lá está, impronunciável) de vinte e tal letras. Já isso era suficiente para derrotar o mais paciente exercício em que se ensaiava a mal amanhada pronúncia dessas palavras sem fim, e eis que ao alfabeto pertencem algumas letras desconhecidas.
À uma, o idioma partilha com o português a profusão de acentos que enfeitam as palavras. É rara a palavra que não tenha um “o” com trema ou um “y” com acento grave. À outra, letras que são exclusivas do islandês (ao que pude saber). Não é o caso do “a” deitado em cima do “e”, que noutros países nórdicos também existe. Há o “d” com um acento que corta na transversal a parte vertical da letra que fica acima da curvatura. E um “b” em forma de aberração, um “b” que parece ter feito dieta, pois a barriga que sai do alicerce vertical não tem origem nos seus fundilhos, nasce mais acima. Como se fosse um “b” mirrado. Vim a saber depois que não é um “b” em bizarra osmose: a partida foi feita ao “p”.
Saber pronunciar estas letras incomuns era outra surpresa. Os sons ecoados de um “d” cortado ao meio por um acento ou pelo “p” anão que mais parecia um “b” sem ligação à terra eram sempre o contrário do que esperava. Havia de ser um problema dos grandes, caso saísse na rifa a emigração para a terra da negra terra. 

25.8.11

A terra da preta terra


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Às vezes punha-me a elucubrar na ferocidade dos elementos que pariram a Islândia. Que caprichos foram deixados aos vulcões para esta terra ser o que é? Enquanto o carro de aluguer se arrastava à velocidade imperativa, sobrava tempo para apreciar a paisagem, ora lunar ora feita de inesperadas estepes férteis, e para as interrogações que povoavam o pensamento. A terra é negra, por vezes é apenas a rudeza das sobras devolvidas por erupções vulcânicas sem memória. Há paisagens que são um entrelaçado de lava arrefecida sobre o qual se depõe uma vegetação muito verde e rala, parecida com musgo - uma heroína vegetação. A sucessão de montes e vales e lagos tem o dedo de vulcões que se assassinaram a si mesmos quando vieram mostrar a sua fúria. Não há declives aburptos nas montanhas e as paisagens espraiam-se por áreas extensas, dando a ilusão de tudo parecer que é tão perto.

A impressão digital vulcânica não largou os quilómetros que andei na companhia do carro de aluguer. Mas o que mais meteu impressão foram os lugares onde a terra fervia, melhor, a água fervente que subia das entranhas e vomitava um esguicho como se um garrote a impedisse de vir à superfície. Nos geysers a terra é quente debaixo dos pés. A água em ponto de ebulição bolça em gorgulhos, dizendo (como se houvesse carência de avisos aos turistas) para ninguém a ela chegar.

O ponto de Arquimedes é a lagoa azul. Uma lagoa azul a sério, sem metáforas ou tremendos esforços para redefinir a paleta de cores. A água, impregnada de sílica, nasce a quarenta graus centígrados e retém-se entre as improváveis formações rochosas que são os despojos de uma arribação vulcânica. Para quem não mete os pés na muito fresca água atlântica da costa ocidental (é o caso), aquela piscina natural é um oásis. Retempera tudo, por dentro até. Fechei os olhos enquanto o corpo submergia nas águas tépidas. Por uns largos minutos. Era como se o mundo estivesse cintado nas majestosas paredes basálticas que ao longe amuralhavam a lagoa azul.

As más notícias para o fim: por aqui come-se baleias (é de cetáceos que faço menção).

(Em Reiquejavique)

24.8.11

Está um Outono do caraças e a fábula do homem produtivo


Quando ontem de manhã desembarquei em Londres, a chuva pegada, os 14 graus de temperatura e a atmosfera macilenta fizeram-me atar diversas pontas. Lembrei-me logo de muitos familiares, amigos e conhecidos que ao verem aquele Outono (lusitanamente a destempo) apanhavam, se pudessem, o avião de volta à pátria da climatologia generosa. Lembrei-me dos meses de estadia em Brighton no fim dos meus estudos - e de como contava a fieira de dias em que só havia a sinfonia da chuva, leve, moderada ou passada pelo filão de uma tempestade. Por essa altura compreendi o lagarto que habita em cada britânico: é tamanha a bebedeira de água abençoada pelos deuses do clima, que mal sentem uns intimidados raios de sol a despontarem por detrás das nuvens se espraiam nos relvados em esquálidas t-shirts, mesmo que do norte soprem temperaturas só com um dígito.

A confirmar que há muitas Europas dentro da Europa (o que, dando uma vista de olhos à conjuntura, dava um rosário de falatório), o londrino Outono antecipado trouxe à memória conversa recente com um amigo. Ele estava atiçado contra os alemães que só olham ao seu umbigo e se estão nas tintas para os pobretanas meditarrânicos assolapados com dívidas que nem imaginam como vão saldar. Entrou na discussão a metáfora da cigarra e da formiga (nós a cigarra cheia de prodigalidade e desatenta ao futuro, os hunos a fazerem de precatadas formigas). No esgrima de argumentos, este: deve custar aos alemães que parte dos impostos que pagam desagua nas cigarras imprevidentes. Veio à baila a genética do clima - ou de como o clima se embebe na genética dos povos. Disse o meu amigo: se os alemães tivessem o nosso tempo generoso seriam tão preguiçosos como nos acusam de sermos. E vice-versa: se a climatologia do centro da Europa se reformasse junto ao mar meditarrânico, éramos tão bons como os que nos invejam o clima (e outras coisas da nossa idiossincrasia que não são para aqui chamadas...).

Ao ver como a chuva esbofeteava com fúria as janelas do combóio que me levava do aeroporto até Londres, estive para dar o braço a torcer. Só faltava provar, naquele exercício especulativo do meu amigo, se com tão mau tempo na nossa genética não éramos acometidos de depressão por tanto chover. E das duas, uma: ou galopávamos no absentismo por doenças do foro mental, ou de irmos ao trabalho contrariados dali não haveria de sair grande obra.

(Em Reiquejavique, Islândia)

23.8.11

A terapia do perdão


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Os lençóis, o regaço para resgatar a lucidez. Abraçava-se à cama derreado, outro dia que parecia não ver o fim e o cansaço que mordia os lábios deixando-os em carne viva. As ideias atropelavam-se uma às outras, pareciam disformes. Algumas vinham à boca de cena como aberrações indistintas – era como se os pesadelos se insinuassem por dentro do cansaço. Não lhe pedissem decisões. Não lhe pedissem para cobrir com um pano branco as podridões que o importunavam.
Dormiu de um lanço só. O sono pareceu ter só um vão de escada, dormido a eito. Sem lembrança de sonhos ou pesadelos – parecia um sono estéril. Na alvorada, julgava-se um homem novo. Recuperado das diatribes diárias que o alquebravam. Subitamente, os dias sombrios tinham sido eclipsados do manual das lembranças rápidas. Entregue à indolência inicial depois do acordar, refastelou-se nos lençóis perfumados. Um sorriso indomável percorria os poros do rosto. As ideias jorravam, agora lúcidas, umas por cima das outras. As pessoais importunações eram, ao início, porosas evocações; à medida que dizia adeus ao torpor da alvorada, as importunações avivaram-se. Tanta era a indulgência que aterrara por milagre que as importunações perderam tal qualidade.
O dia nascera estranho. Não se lembrava se sonhara ou se tinham sido pesadelos a tomar conta do sono. Não se lembrava dos sobressaltos dos dias que tinham sido depostos na proximidade daquela manhã. E já pouco se lembrava do caldo das importunações que desfiavam desavenças mal resolvidas. Era capaz de apontar a dedo quem integrava o rol das importunações, mas não era capaz de puxar pela memória para tornar visíveis os motivos por que o eram.
Tomou uma resolução – ela também a rimar com a clareza da manhã: o perdão unilateral metido na caixa do correio de quem era pessoal importunação. Porque as asperezas extorquiam anos de vida, ensinou-lhe a manhã estranhamente abençoada. Oxalá do outro lado, onde residissem as outrora importunações, também houvesse vontade de perdoar.

22.8.11

Os rostos do medo


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(Prolegómenos de um optimismo improvável)
Os amanhãs perfilam-se nas suas cores desbotadas. Avisam-nos: os piores dias estão para vir. Preparam-se cenários dantescos. A austeridade ainda faz o seu caminho. Havemos de carregar no dorso o fardo das ilusões de outrora, semeadas por pecaminosos tecelões que não souberam (ou não quiseram) ter cautela quando tiveram o tear nas mãos. Que estejamos precavidos para as empalidecidas alvoradas por diante.
Ou talvez seja tudo ao contrário. Talvez as palavras que advertem para o porvir embaciado sejam por excesso. Uma pedagogia para o realismo. É como se nos estivessem a dizer que os tempos de cabeça no ar já não têm cabimento. Agora temos de aterrar. Já não têm serventia os passos maiores que as pernas. Dantes eram dados desses passos na convicção de que o abismo era três passos depois. Agora, que o perfume sórdido do abismo se insinua atrás da orelha, esboroam-se as ilusões: o precipício está à frente dos pés. À míngua de sermos trapezistas (que as artes circenses ficam para os que andam no engodo das multidões), o imperativo de aterrarmos.
Esta é a pedagogia para os amanhãs assustadoramente embotados com sombras de pesar. Os rostos amedrontam-se, carregam-se de olheiras, desfazem-se de sorrisos. Se calhar, estão enganados os rostos assim descompostos. Nos escombros encontram-se os rudimentos da parcimónia que terá préstimo para arquitectar os porvires, sejam eles quais forem. Só se sabe que as alvoradas por diante vão ser diferentes. Acenam com hediondos espectros de amanhãs mal amanhados. As expectativas partem alinhavadas por baixo, rasas ao solo enlameado.
Este é o berço do optimismo que desabrocha do próprio pessimismo reinante. Com uma condição: não podem as concessões à apatia verter-se no copo de onde bebemos. Ao partirmos com as expectativas alinhavadas tão rasas ao solo, os amanhãs não podem ser desbotados. Os rostos vão perder a sua palidez, sinal de que amordaçaram os temores sedimentados. Há crises abençoadas.