29.7.11

O jogo da selva


In http://www.gingers4limpar.com/wp-content/uploads/2011/04/riots.jpeg
E se os dados lançados ao tapete dessem uma combinação a que não estamos habituados? E se – ó possível heresia – houvesse retrocessos nas regalias a que estávamos acostumados?
É um jogo matemático. Não se foge ao espartilho dos números quando as fórmulas revelam resultados desagradáveis. Os limites dos embustes esbarram na inconfidência dos números cominados pela matemática. Uma das frias bofetadas da contemporaneidade é estarmos a caminho da geriatria. As prerrogativas tão generosas já não conseguem trepar as ameias cada vez mais elevadas – ou então dá-se o caso de os corpos embotados já não conseguirem vingar a empinada subida; ou de as paredes entretanto terem ganho um musgo escorregadio que tartamudeia os corpos exangues.
E se um dia, por fim, dermos conta que somos de mais e envelhecidos para deitarmos a mão às benesses habituais? Será a selva definitiva, o palco embelezado para o terçar de todos os egoísmos. Metade de nós sentados na poltrona das regalias, empunhando um cálice que fortalece o discurso dos intransponíveis direitos adquiridos. A outra metade à míngua, em febre revoltosa, primeiro estendendo a mão em demanda da complacência dos bem instalados. E depois, perante a impassível recusa deles, jogando a insurreição.
Podiam uns gurus da lucidez ensinar aos afortunados que a sublevação dos modernos descamisados é o pior dos porvires. Podiam convencê-los que ensimesmar é suicidário, a sementeira de uma longa invernia de caos nas ruas, de saques e da desvalorização da vida dos outros. Podiam ensiná-los que a míngua de tantos é um barril de pólvora que a ninguém acautela. E que a retórica dos direitos adquiridos é uma miragem, o espelho por onde se decanta a nostalgia de um pretérito que dançava uma música de que a memória subitamente se esqueceu sequer dos acordes.
Fosse a empreitada ungida com uma milagrosa consequência, e os possuidores da fortuna comprariam o sossego dando uma parte do quinhão aos desapossados. Nesse dia, já ninguém entoava a melodia dos direitos adquiridos.

28.7.11

O sorriso censurado


In http://www.dojapao.com.br/fotos/1360-bbtown_jrgsr.gif
Quem o avisa é a comissão de trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Já se conhecia o pregão das boas condutas no trabalho: não se bebe (álcool) em serviço. Estes sindicalistas entraram para os anais ao recomendarem, com o jeitinho que se apura no comunicado, que os do conselho de administração não devem rir enquanto trabalham. Nem sequer sorrir. Pois a graduação (sorriso-riso) não é de somenos importância.
(A comissão de trabalhadores, tão afogueada neste zelo peremptório, devia redigir um manual que esclareça, com o detalhe de um bisturi, quando um mero sorriso pode ter mais gravidade que um riso de goela aberta. É que, às tantas, um sorriso esconde um cinismo letal. Já um riso de goela aberta esbofeteia um sentir com a frontalidade dos honestos.)
Ora isto é uma aleivosia. Onde já se viu algum incriminar outrem porque anda bem disposto e esboça um sorriso que sinaliza um estado de espírito? Já para não falar da restrição de movimentos dos administradores dentro da empresa que gerem. Era o que mais faltava: alguém dizer que eu não posso ir a certos compartimentos da minha casa. Um dia destes, ainda dão de caras com controleiros sindicais a cirandar pelos cantos da empresa, uma espécie de piquete de serviço que veda o acesso dos gestores aos locais que as luminárias sindicais determinaram, do alto do seu unilateralismo tão democrático, que não podem ser frequentados pelos patrões. E ai se os apanham com um rosto sorridente, que o piquete assobia bem alto para que os mastins de serviço acorram ao local e preguem uma carga de porrada aos insultuosos administradores.
Os gestores deviam formar o seu próprio sindicato. E talvez uma milícia para proteger o couro. A força bruta só verga os timoratos.

27.7.11

Olho por olho


In http://pt.ruadireita.com/images/product/542/189ee2a8b4a4478f0b8e141c24188c78.jpg
Ensinado na cultura de alguns valores, dos valores estruturais, eles escorregam pelo esgoto quando aterra a prova dos nove. Uma coisa será a teoria. As teorias, tão belas que servem para emoldurar, com toques de requinte, a quinquilharia diversa destinada ao museu das coisas gastas. Outra, abraçada ao regaço das diferenças impensáveis, vem do choque térmico, os factos na sua crueza.
Podia ser o mais importante sacerdote dos princípios e dos valores por que se dizia reger. Podia alvitrar juízos de valor enquanto os outros deslizavam para fora dos limites tolerados. Punha rosto sombrio, encarquilhava as sobrancelhas e, de dedo em riste, lavrava sentenças que entravam como punhal frio na carne já de si ensanguentada dos outros. E, sem dar conta, deitava-se na sua intensa puerilidade. Quando julgava estar acima das suspeitas germinadas nos demais, as sentenças alinhavadas eram o oráculo da sua demência.
Um dia, tudo desabou. Os valores que pertenciam a um altar inviolável despedaçaram-se com o fragor de uma trovoada que entrou pelo corpo e desmaiou na sua fundura. Nesse dia, deixara de ser altivo juiz e açambarcou o banco dos réus. O mesmo banco dos réus onde depusera aqueles que judiciara. No estertor da aflição, vazou, em silêncio (que o orgulho tem a voz mais alta), a rectidão da clemência. Lá, onde pedia meças à profundeza da intimidade, sabia que a comiseração não é praticada nestes lugares desapiedados, convertidos à frugalidade do desprendimento.
Um prato servido frio. Com a austeridade das palavras escassas, que a severidade manda abdicar das flores. Nessa altura, na pose do réu que tantas vezes ajuizara, provou do veneno que dera aos outros. E percebeu: a vilania da vingança é um destemor vão, uma vinha cercada por insectos transportando o vírus da doença sem remissão. Percebeu que não devia ter depurado tanta doutrinação. Ela fora o seu patíbulo.
Depois, era só esperar que uma qualquer justiça, divina ou não (que interessava?), abjurasse o olho que tantas vezes curou de ser algoz.

26.7.11

Outro naco de pessimismo antropológico


In http://www.horusweb.net/2011/07/fotos-video-atentado-na-noruega.html
Dão que pensar, os atentados terroristas na Noruega? O terror que liquida inocentes não merece dois segundos de uma reflexão, a não ser para repudiar tamanha estupidez em dose cavalar.
Nestas ocasiões, há sempre quem procure amanhar duas explicações que justificam (mas não legitimam) a covarde barbárie. Há sempre uma explicação que leva a perceber (mas não a legitimar) o acto de terror, que assim perde adjectivação. Sociólogos, psicólogos, antropólogos e um cortejo de servidores de ideologias nas franjas dos perpetradores do terrorismo chegam-se à frente no acto expiatório. Tão terroristas são os actores materiais como os porta-vozes que depois aparecem a requisitar complacência com os fazedores do terror. Com uma agravante: aqueles cometem a indignidade de nem sequer respeitarem a memória dos inocentes cujas vidas foram ceifadas pela cegueira dos covardes terroristas.
Nestes atentados na Noruega, a perplexidade vem do número de vítimas causado por um único terrorista. E tudo o que entretanto se soube acerca da doentia personalidade do homem, dos filmes exibicionistas que legou à posteridade, da autoria do manual de auto-doutrinação política carregado de deploráveis ideias extremistas. Do que foi dado a conhecer da “obra” deixada pelo terrorista, o maior embaraço é perceber que ali está um homem inteligente. O mal é quando a inteligência é serventuária dos piores propósitos. É um cocktail explosivo.
Depois temos direito à espessura das análises de especialistas e de outros que passeiam o seu apedeutismo escondido na pose catedrática. Como o demente confessou os seus ódios de estimação (o “marxismo cultural”, o multiculturalismo que tem vindo a islamizar o ocidente), logo saltaram os argumentários de alguma direita perigosamente próxima da extrema-direita a tentar atenuar a barbárie e de outros que aproveitaram para, de forma obscena, puxarem lustro ao ofendido marxismo por onde transitam.
E eu digo que já chega termos sido espectadores da barbárie que destila demência em estado puro. Os abutres que agora andam em contramão, ora a justificar, ora a capitalizar em proveito da ideologia atacada, podiam-nos poupar ao triste espectáculo. O momento é penhor do silêncio do luto antropológico.