5.5.11

Como derrotar uma neura


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Uma neura daquelas, opaca, que nos deixa misantropos. Quando se atiram olhares faiscantes sobre toda a alma que se cruze no caminho. Daqueles estados de espírito que, de tão tristonhos, atraem mais do mesmo mal. Como se fosse uma espiral indestrutível. Imersos na irrazoável fervura dos sentidos, a desconfiança de que o mundo inteiro conspira contra nós.
Essas neuras carecem de travão. Ou o corpo entrega-se a um desvario ainda mais perigoso – o de se deitar num divã de psicanalista. (Juízo sem experiência própria, a não ser por interpostas pessoas que padecem destas maleitas e que, depois de se levantarem do divã, exibem patologia ainda mais refinada.) O receituário vem de dentro. Das veias que escaparam à aspereza alcalina. Não tem serventia o estertor das veias cauterizadas pelo solimão espalhado.
Os segredos são cultivados pela interior higiene pessoal. É na força interior que se encontra o sal que enxota os maus presságios que sobejam para os dias futuros. É como se a cabeça tivesse canais onde mentalmente pudéssemos mexer. Com pinças, somos cirurgiões das entranhas por onde se movem os arquétipos da irritação. Usa-se um maçarico para domar os neurónios intumescidos, os que se entregaram às sombras que acabrunham um dia inteiro.
Como auxiliares, como se fossem alavancas de uma disposição diferente, os olhos andam como se fossem radares a que nada escapa. Há filtros que decantam as excrescências abundantes que, se alguma utilidade teriam, era a de arrastar a prostração. Podem ser as ondas do mar, a espuma na crista da onda, as árvores que esvoaçam lambidas pela brisa vespertina, os carros eléctricos que emprestam um ar sedutor e anacrónico à modernidade em redor, uma criança debitando ledice enquanto desce o escorrega, um cão vadio a lambuzar-se nas sobras deixadas a um canto do lixo, o louco em correrias desenfreadas enquanto cantarola melodias ininteligíveis. E anedotas inteligentes. Os olhos, os belos olhos, de uma rapariga que vinha do lado contrário. O velhinho trôpego a saciar-se no fontanário público enquanto, às escondidas, os galfarros preparam as mortalhas onde um chocolate diferente terá leito. Ou o tracejado esbranquiçado que um avião deixa atrás de si ao sulcar os céus enquanto mergulha no Atlântico, convencido que esse destino não seria lugar melhor para aparcar a existência. Podem os olhos revirar-se no passado, nas inúteis mas por vezes balsâmicas recordações. Ou deitarem-se numa peripécia que especula o futuro, esquadrinhando oráculos de onde saia um Aladino na adivinhação do porvir. E pode tudo alcançar-se na singeleza das palavras de um poema. Ou apenas nas palavras ditas ao ombro de um amigo próximo. Ou através de uma insólita confabulação com uma desconhecida operadora de caixa de supermercado, desatada por ela ao exibir uns laivos de salacidade no olhar atirado de soslaio.
De repente, é como se um céu ocupado por nuvens densas se começasse a desembaraçar das adjacências que poluíam o horizonte. Depois de pestanejarem, os olhos descobriam que tudo era radioso. E nem lembrança da neura sobejava. Nem atrás do horizonte.

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