25.4.11

Tréguas


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As inquietações que ferviam as palpitações ao rubro tinham um freio à medida. Já não sobejavam os sobressaltos em coreografias selvagens com punhais a adejarem. Já não havia o tempo tomado pelas angústias assolapadas que desviavam os sentidos para desvarios inconsequentes. Era como se uma tempestade medonha dissolvesse as nuvens plúmbeas num céu luminoso.
As mortificações, inúteis como são todas as mortificações, tinham o seu próprio ocaso. E se todos os lugares pareciam salas frias onde se compunham paredes estéreis, os dias curvavam a aridez que povoava os pensamentos. As paredes ganhavam uma espessura colorida, as tonalidades irrompendo com a timidez esperada. Deixavam de ser lugares gélidos onde não pareciam medrar os sentimentos sem serventia. Lá por dentro, um intenso processo depurativo. Tudo se decantava após a longa digressão pela aridez atormentada. Às voltas com os fundilhos do ser, como se a escassez de forças buscasse na profundidade mais remota uma réstia, uma réstia que fosse, para reacender uma chama.
E a candeia sobressaiu. Vingou a chama que a certa altura parecia apenas uma longínqua promessa. Os olhos despertaram para a beleza das coisas, para a exiguidade das palavras que contudo soçobravam diante da grandeza de quem as proferia. Os olhos, diletantes, partiam incessantemente em demanda do desconhecido. Não é que o vocabulário dos prazeres fosse reaprendido, os prazeres de outrora remetidos a uma remota lembrança que deixara de importar. Não: a esses juntavam-se outros tantos, outros mais, numa vertigem imparável. Era como se cada dia dobrado contasse por três dias de uma era anterior.
Todos os detalhes continham a preciosidade do ouro. O voo de um pássaro que arremetia contra a nortada furiosa. Os meninos a cirandarem à volta do areal, descompondo as areias alisadas pelo vento agreste. Ou um castiço estrangeiro na mesa ao lado, chapéu e botas de cowboy, uma camisa florida e um colar de flores a fazer lembrar o hula hula havaiano, enquanto degustava cada gole do enregelado vinho branco e falava sonoramente em inglês americanado ao telemóvel. Ao longe, como miniaturas mar adentro, a miudagem desafiava o sol que se ausentara e a água habitualmente própria para refrescar garrafas de vinho branco. A gente profusa na avenida junto ao mar, irradiando alegria pela primavera que depôs a vagarosa invernia. E os olhos que se demoram nas observações do tudo em redor, enquanto ao longe nuvens carrancudas, pressagiando trovoada, espreitavam o descerro de nova tempestade.
Os contornos dos dias passaram a ser embelezados pelas cores que emprestavam a sua radiosa feição. A depuração anunciava-se completa. E nem a trovoada que se acercava parecia desatar os nós dos sobressaltos que teimavam em errar (emudecidos todavia) pelo córtex. Os temores pareciam entregues no rescaldo da história. Que demência podia refulgir outra vez se havia panos novos, alvos panos novos, preparados para receber um aluvião de cores garridas deposto pela sucessão dos dias inteiros?
Os dias não se perdiam nas demoras em ininteligíveis vigílias interiores. Os dias presentes (os que contam) sabiam que essas demoras estavam fadadas à sorte bastarda. 

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