19.4.11

Éramos dementes?

In http://mjfs.files.wordpress.com/2007/09/pav-rosa-mota.jpg
Nas irrupções da adolescência, quando a rebeldia latejava o seu musgo por dentro das veias, era como se enlouquecêssemos. Queríamos provar a destreza, ou a bravura, que com frequência se confundiam com temeridade  sem medida. Os passos eram dados sem olhar à bitola da perna. O sangue fervente que vinha à cabeça comandava os furores de cada momento.
Lembro que uma noite não nos apeteceu pagar o preço simbólico da entrada no Palácio de Cristal. Íamos aos matraquilhos, aos flippers, aos carrinhos de choque e terminávamos a função com o cachorro acompanhado por umas cervejas que bebíamos com sofreguidão. Nessa noite, quisera um de nós experimentar a entrada pela porta do cavalo, o lado oposto da entrada por onde iam ao recinto as pessoas de bem. Naquela noite, julgáramos que não éramos pessoas de bem. A rebeldia em apoteose era a barreira, a artificial barreira, que se impunha. Um de nós sugeriu que entrássemos com manha, trepando a íngreme escarpa que divide a Rua da Restauração do recinto amuralhado do Palácio.
E nós, que nada sabíamos de alpinismo, metemos as mãos entre os pedregulhos acintosos e o musgo traiçoeiro escondido entre os recantos do muro de pedra tão íngreme. Naquela altura, a iluminação pública era de uma timidez tal que quem passasse na rua não notava o bando de pelintras fazendo o caminho até à ilegal entrada no Palácio. Havia alturas em que parecia que tínhamos que recuar. O passo que se seguia até à próxima reentrância das rochas era maior que o corpo adolescente que trazíamos. Esticávamos o corpo, mas as mãos eram pequenas para a próxima reentrância. A batida em retirada não era alternativa. Haveria o orgulho imprudente de ficar ferido. O mais que não fosse, um dilema acelerava as palpitações: retroceder era mais árduo que a parte da ascensão que faltava.
Estudávamos as hipóteses. Um de nós, que seguia mais atrás, deu três passos laterais e descobriu outro sendeiro que ia mais a direito pela parede de pedra que se empinava de modo temerário. Às vezes assustávamo-nos com as pedras que se desprendiam quando as mãos beijavam solo sem firmeza. Os que estavam em baixo levavam com os calhaus que iam aos solavancos pela ribanceira.
Quando chegámos ao topo e, um a um, subimos o degrau sobrante até saciarmos o gosto da ilegal entrada no Palácio, olhámos para baixo. Por fim, um a um, a coragem de desviar os olhos para o que vinha atrás de nós. Nunca passou pela ideia se um passo fosse em falso e o corpo, e os corpos dos que viessem atrás, fossem aos trambolhões pela escarpa abaixo. Ninguém, na pose triunfante da adolescência garbosa, teceu as entrelinhas do colapso. Depois da contemplação ufana do feito, um de nós atirou em jeito de desafio: “isto deu mais pica que atravessar a pé o arco da Ponte da Arrábida”.
Agora que é presente, quando passo e olho de esguelha para o precipício que assaltámos, sou acometido por um arrepio que atravessa as costas de um lado ao outro. Um arrepio acompanhado de uma interrogação: como foi possível? Podia deixar vociferar a sensatez toda. Podia renegar a proeza. Um dia destes, parei o carro diante da escarpa que acolheu uma aventura. E, depois de afastar os panos negros da sensatez toda, intuí: tinha sido proeza.

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