4.4.11

Aurora boreal


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Pressentiam-se os dias vorazes. Os torpores pertenciam às luzes baças de outrora. Os sobressaltos sombrios já não vagueavam como cães vadios. Os pedaços dos dias, servidos em talhadas apimentadas, sobrepunham-se aos sons guturais que teimavam em adejar como resplandecência infinita do tempo que se ausentara. E, contudo, a lua cheia que se compunha ao entardecer parecia oca por dentro, como se a luz que dela irradiava se dissolvesse em penumbra ao mais pequeno toque.
Os dedos procuravam chegar à lua. Entrelaçados, rugiam as avassaladores dores interiores. Já não pertenciam a este tempo, essas dores. Às vezes esvoaçavam como se fossem fantasmas a pontuar os dias presentes com enigmas que davam alento à imaginação. Os dedos tingiam a lua com as cores pretendidas. Era possível. O magma profundo não era inacessível. Quando se pensava que só através das fumarolas que regurgitavam espaçadas baforadas era possível espreitar pelas fendas escuras que ocultavam o magma fervente, abriu-se uma brecha que devassou as entranhas. Mas só aos olhos próprios, que a fenda continuava a ser um insondável mistério para os demais.
A lava incandescente que bolçava desde as profundezas soava a reincarnação sem prévio decesso. Nem as noites, as outrora intermináveis noites, atemorizavam. Ou os pesadelos povoados por répteis vorazes, répteis só à espera de abocanhar a vítima (o fautor do pesadelo) com as presas de onde se libertaria um fatal veneno. A lava, avançando com uma lentidão exasperante, tudo destruía. Tudo purificava.
Ao amanhecer, os olhos estremunhados deitavam-se na coreografia de cores que emprestavam um enigmático sainete ao horizonte. Os minutos emolduravam-se naqueles instantes onde a alvorada se decantava. Era como se do dia restante nada mais interessasse. E os olhos, mergulhando por dentro dos seus intensos, furiosos sonhos, coalhassem o avanço dos relógios. Aquele dia era apenas a aurora, uma boreal aurora que afinal não tinha lugar apenas nas paisagens árcticas.
Os dedos transpirados, de tanta força se emaranharem, recebiam as pétalas adocicadas da alvorada. Ungidas com as suaves gotas do orvalho primaveril, as pétalas transformavam os sentidos. Como se fossem uma droga qualquer em plena transfiguração dos sentidos. O processo repetia-se nos últimos dias. E os dias já não eram iguais como se habituara a levá-los. Os dias eram o contínuo amplexo da madrugada com as cores ainda intimidadas pela impetuosidade da noite. Resgatavam-se os diademas das horas vindouras às alvoradas macilentas. Os dedos entrelaçados, teimosamente tentando tocar ao de leve na lua senescente, estavam cansados. Mas os olhos advertiam: a função era uma inutilidade, tantas as possibilidades entreabertas pela luz clara desembainhada pela aurora que anunciara o encanto matinal. Para quê dedilhar a lua?
Valem, esses retratos perenes, pela amplificação dos sentidos. Fossem todas as alvoradas um cântico entoado à miríade de luzes que se desfazem com o andar do tempo. Fossem a encenação dos dias desprezíveis. Para através delas, e da sua sumptuosa demora que enfeitiça os olhares inertes, todo o dia se prolongasse no marasmo encantador da cidade que cicia um admirável poema visual aos ouvidos dos madrugadores.

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