7.2.11

Tempestade


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A noite perdera o seu silêncio estrutural. Só silvos do vento furioso, levas de chuva que se esmagavam contra as persianas. Elas estremeciam à mercê da tempestade. O sono desligado, ainda com a noite a meio. O corpo envolvido num agasalho (a casa estava fria) e os pés a caminho da grande janela da sala para admirar a tempestade. Uma romagem militante, esteja desocupado o tempo para a contemplação do caos servido pelas mãos da tempestade que destila a sua cólera.
O vento espelha-se nas árvores arqueadas sobre o seu dorso. Esvoaçam sem norte, dilaceradas pelas rajadas de vento que sopram de onde calha. Anda folhagem pelo ar, a folhagem em decesso que sucumbiu às unhas que o vento aferroou nas entranhas das árvores. As bátegas de chuva desenham uma trajectória perfeita, contornando as esquinas dos prédios numa simetria sublime. A relva está encharcada, as poças de água são o leito onde as abundantes gotas de chuva têm o seu remanso. Um guarda-chuva timorato é empurrado pela rua fora, perdido do seu proprietário. Alguém tardio desce a rua. Protege-se da chuva impetuosa puxando o casaco pela gola. A força do vento, que sopra de frente, trava a caminhada. Ele cambaleia, avançando a custo entre duas rajadas de vento que se congeminam.
A chuva constante tinha instantes de fúria sem freio. Caía com tanta afluência que diminuía a visibilidade, como se um denso manto turvasse o horizonte. No vidro da janela escorriam gotas de água perdidas, entrecortadas por outras que nelas se esmagavam. A aliteração era pontuada pelos salpicos visíveis quando a gota já em descanso, descendo pelo vidro, era interrompida por outra, errática, em rota de colisão. O vento, quando disparava em velocidades ciclónicas, descompunha o leito de gotas acamadas na vidraça.
A tempestade persistente não deixava retomar o sono. Ficou ali, embrulhado no agasalho mas com os pés descalços, na demorada admiração da coreografia que parecia ininteligível. O caos apoderava-se de tudo, prometendo danos. Uma placa de zinco cumpria o seu voo desaustinado, abraçando-se ao vento que a desprendera. Estirou-se num automóvel estacionado no sítio onde não devia. Uma refrega mais exaltada do vento torceu uma árvore de envergadura. Cambaleou numa derradeira hesitação, antes de se curvar, indefesa. Fora arrancada pela raiz. Já tanta era a fraqueza que a apoquentava.
Nisto, a madrugada entrava já na noite tempestuosa. Parecia combinado: a madrugada que depunha a noite acalmava a cólera da tempestade. As árvores já não arqueavam tanto, as bátegas de chuva não turvavam, com a sua desordenação, o horizonte. Sobrava o restolho de tudo: as folhas caídas, as poças de água no relvado, a água abundante que descia a rua como se esta fosse o leito que encamisava o caudal vociferante. Passaram dois carros dos bombeiros. Era o rescaldo da tempestade, adormecendo na sua letal acalmia.
Daí a uns minutos, quando ligasse o rádio para ouvir as primeira notícias trazidas pela manhã, haveria relatos dos prejuízos semeados pela tempestade. Não é que fosse insensível às perdas das pessoas vitimadas, mas o seu inofensivo egoísmo estava de barriga cheia por causa das horas de observação da tempestade. O que pode ser mortal encerra uma inaudita beleza.

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