17.2.11

O miradouro


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Um promontório escondido. Para lá chegar, por entre veredas insondáveis, o marinheiro despojou-se do seu elemento natural. Escalou serranias. Nos tímpanos repetiam-se estampidos (a desabituação à altitude). Estugou o passo. Metera na cabeça que subiria ao promontório mais alto de todos, como se fosse uma peregrinação em exaustão dos apodrecidos escantilhões interiores. Sagraria, então, o seu pessoal miradouro.
Nem a chuva que se despejava sobre a cabeça, ou os lamacentos trilhos entre arbustos rasos, ou os calhaus pontiagudos cravados nas solas das botas, incomodando os pés; nada atrapalhava a ideia enraizada. Os que lhe eram próximos reconheciam a faceta. Um teimoso sem remédio. Nasciam ideias inesperadas que pareciam abrolhar de um inóspito recanto do pensamento. Os que lhe eram próximos estavam habituados a serem sobressaltados pelo insólito que fervia nas veias do marinheiro.
Enquanto trepava os contrafortes ásperos, e o vento soprava melodias que fertilizavam divagações estéreis, os pés prosseguiam maquinalmente. Tinha que desbravar os alcantilados caminhos que se insinuavam nos montes que caíam a pique sobre a sua cabeça. Um automático pensamento: “aqui nunca penetra a luz do sol”. E outro, espontâneo, que se seguiu: “e o que interessa anotar esse lugar-comum?”. Era isso que mais o incomodava. Quando espreitava por detrás do ombro, esquadrinhando (inutilmente) os esboços de antanho, era assaltado por um interminável rosário de lugares-comuns.
Amansavam-se as abruptas inclinações das rochas atapetadas com musgo. Ao mesmo tempo que a vegetação rareava, um nevoeiro denso plantou-se diante dos olhos. Quanto mais subia, mais escura a travessia. Já não havia paisagem – ou a paisagem toda tomada pelo denso manto gris da névoa. Percebera, por entre as teimosas gotículas do nevoeiro, que as veredas alcantiladas deram lugar a um amplo planalto. Custava, a respiração. Não podia deitar mão da sabedoria dos marinheiros mais velhos, que eles jamais teriam andado por tais lugarejos. O corpo pedia descanso, mas a recalcitrante cabeça arrastava as pernas cansadas enquanto houvesse um contraforte por derruir aos seus pés. Prometeu que só parava no miradouro alojado no promontório. Só faltava um pedaço do pedregoso trilho.
Depois do nevoeiro, as cotas mais altas aferroavam um sol radioso. Já avistara o miradouro, um punhado de passos à frente. Quando a empinada subida travou o ímpeto no gradeamento que amparava a queda no precipício, o marinheiro soltou os pulmões e absorveu todo o ar que conseguiu. Fechou os olhos por uns instantes. Sentia o ar frio, o ar nitidamente frio das altitudes, a refrear o enrubescimento do rosto. Entreabriu os olhos, a luz do sol mesmo sob o firmamento a anunciar o entardecer.
Percorreu todos os cantos do horizonte, dedilhando os fusos da rosa-dos-ventos. Os músculos cansados das pernas e os pés arrimando com bolhas pediam que se sentasse na laje escura que emprestava chão ao miradouro. Aquele miradouro: a outra escotilha há tanto tempo cobiçada pelo marinheiro. Não haveria de envelhecer sem travar conhecimento com tão diferente escotilha. Os elementos jogavam-se na sua alteridade. Tinha subido tão alto, empoleirado no promontório e, todavia, não avistava as águas dos oceanos.
Pela primeira vez, achara a ausência dos mares uma tela reconfortante.

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