10.2.11

Antes de Saint-Tropez


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A costa azul desfilava encantos publicitados. A espaços, a costa escarpada encontrava pousios onde se estendiam praias de areia pedregosa e escura. Às vezes a estrada fugia do mar, à mercê de um promontório que a engenharia não soubera domesticar. Serpenteava tortuosas curvas entre os contrafortes das montanhas que mergulhavam, abruptas, no mar. Depois do cume, atirava-se, a estrada, numa vertiginosa descida que voltava a beijar as margens do mar. À passagem das localidades, o notório luxo das moradias viradas para a estrada.
Para trás havia ficado Cannes. Para os arrivistas sociais, um deslumbramento ímpar. Um cortejo infindável de pretendentes ao estrelato, mais os acéfalos seguidores. Hotéis que transpiravam um luxo onírico. Tudo embrulhado num glamour que encanta multidões. A caminho de Saint-Tropez, numa rotunda que fazia a despedida da (para muitos) sumptuosa Cannes, o semáforo acendeu a luz vermelha. Inerte, com os pés enterrados na relva que separa os dois lados da estrada, um homem de meia idade segurava entre as mãos um cartaz encardido pelos gases vomitados pelos automóveis que por ali passavam em abundante trânsito. O cartaz gritava, em vez do silêncio do homem, “je veux travailler”.
O homem tinha o olhar detido no firmamento. Insensível aos automóveis que ora passavam apressados antes que o semáforo se arrependesse da luz verde, ora se detinham ao sinal de obrigatória paragem. Parecia hipnotizado, os olhos vidrados, humedecidos por lágrimas vãs que percorriam o desespero interior.
Não pedia esmola, como fazem os pedintes que tomam conta de uma esquina em movimentadas ruas citadinas. Não jogava com as fraquezas da consciência dos burgueses que se cruzam com os habituais mendigos que ora confessam a fome que os mirra por dentro, ora desfilam o rosário de lamentações na equação da numerosa prole que padece necessidades. Impassível, aquele homem. Metido em andrajos que não impediam uma impecável gravata que se distinguia entre as descompostas fraldas da camisa. Usava uns sapatos gastos, os cordões desapertados revelando o desleixo de quem teria desistido. Mas não estendia a mão à esmola em forma de numerário. Não mexia com as emoções dos viajantes gritando a fome que o consumia, nem atirava os entristecidos rostos da prole numerosa à sensibilidade de quem passava. Só queria que lhe dessem trabalho.
Quanto desespero leva um homem a emprestar-se ao cruzamento entre duas estradas movimentadas, esmagando nos viajantes o excruciante pedido para trabalhar? Convenci-me da dignidade do homem que nem o frio parecia deter. Ou, porventura, fosse louco. Um daqueles loucos que recusa a humilhação do assistencialismo, que declina a piedade falsamente comovente dos que depositam uma esmola na mão estendida em demanda da comiseração alheia. Aquele homem não queria nada disso. Queria que um qualquer dono de empresa estacionasse o carro na beira da estrada e fizesse uma proposta de emprego. Não queria esmola. Oferecia a força braçal em troca de sustento.
Não me encanto com as realistas narrativas das misérias sociais da lavra de escritores que puxam à lágrima enquanto insinuam doutrinação política. Mas fiquei minutos inteiros com o homem que queria trabalhar a povoar a paisagem que aparecia enquanto sulcava a estrada.

2 comentários:

Zé da Esgrófia disse...

Agora percebo um pouco melhor a condução agressiva na estrada entre Cannes e Saint-Tropez.
Ass. Um dos que ia no banco de trás

PVM disse...

Nada disso: andei sempre devagar! Vocês, os do banco de trás, é que exageram. Queriam o quê? Condução de domingueiro?!