1.12.10

O homem compenetrado e a algazarra estudantil


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No restaurante, uma festa pegada. Três mesas ao lado, numa fileira de mesas onde se amontoam as garrafas de cerveja vazias e se tornam caóticos os despojos de amendoins e tremoços, meia dúzia de estudantes cantam com estridência. Ébrios, a atestar pelo quociente das garrafas vazias por cada folgazão, cantam e riem, abraçam-se a cada motejo. Metem-se com raparigas que passam sozinhas – que as que passam acompanhadas merecem apenas um indiscreto olhar, não vão os acompanhantes disparar um furioso trovão que termine em escaramuça.
Três mesas ao lado, o homem compenetrado, sozinho, mete os talheres ao manjar que encomendara. Ao princípio, incomoda-se com o ruído que reputa insuportável. Apoquentado, não consegue apreciar a iguaria que estava há largos dias prometida no cardápio mental. Era como se os sentidos estivessem anestesiados pela algazarra montada três mesas ao lado. Logo ele, que nunca fora dado às tradições da estudantada, às capas e batinas que lhe evocavam um cortejo de gente fúnebre, às imperativas bebedeiras que se tomam nas horas vagas do estudo e que espalham a leviandade que precede a idade da responsabilidade.
A meio do tremendo ruído, do ruído que ecoava nos alicerces do restaurante fazendo ranger o chão de madeira, desviou o olhar em direcção das três mesas ao lado. Olhou, um a um, os rapazes folgazões. Durante uns minutos, a iguaria ficou a esfriar no seu empratamento. O homem compenetrado, que interiormente faz gala da sua espartana forma de ser, deteve-se por instantes em cada um dos convivas que coleccionavam garrafas vazias de cerveja naquelas mesas à beira do caos.
De repente, apeteceu juntar-se à algazarra. Sentar-se àquela mesa e começar a entoar as mesmas músicas meãs que atropelavam o silêncio do lugar. Que interessava que fossem meãs as músicas que soavam pela voz estrídula dos rapazes, das vozes desafinadas pelo álcool em ebulição? Que interessava que os rapazes fossem o estereótipo do que sempre considerara ser a sua antítese? O homem compenetrado quisera soltar-se dos seus espartanos pergaminhos. Apetecera-lhe findar o repasto deixando no prato uma boa parte do manjar que se prometera há largos dias. Pegaria apenas no copo de cerveja e, enquanto se encaminhava para três mesas ao lado, ordenava ao empregado: “uma rodada por minha conta para esta mesa”. Os rapazes, hospitaleiros, com o espírito solto pela ebriedade, cediam sem hesitar um lugar à mesa. E o homem compenetrado, ainda que desconhecedor do cardápio musical em interminável desfile, folgava tanto como os rapazes embebidos na sua algazarra.
Foi então que o homem compenetrado despertou da lividez mergulhada nas profundezas do repasto, onde os olhos por instantes tinham adormecido no espartilho de um sono acordado. A comida estava fria e o barulho continuava, ensurdecedor. A folia parecia não ter fim, três mesas ao lado. Aquelas imagens mentais que desfilaram no acordado sono momentâneo mudaram o estado de espírito do homem compenetrado. As músicas entoadas não pareciam meãs, os rapazes folgazões não preenchiam o estereótipo odioso, e até a mesa onde estavam sentados parecia o retrato da harmonia. O homem compenetrado, sisudo como sempre o fora, enchera-se de alegria interior. Contagiado pela folgança instalada três mesas ao lado. 

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