9.11.10

Os chineses vieram cá comprar dívida pública; e o nosso esquecimento também?


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Diplomacia de cócoras. Os endinheirados mandam e os lacaios baixam a cabeça, num oportunismo soez. Se os endinheirados exigem que façamos de conta que as suas atrocidades não existem, os anfitriões acatam ordeiramente a exigência. Mandam os bons costumes que os anfitriões não hostilizem as visitas. E se alguém vier para as ruas incomodar as visitas, manda-se a polícia repelir os aborrecidos manifestantes.
Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. Há duas semanas, foi a visita relâmpago do tiranete venezuelano. Há dias, o ditador chinês. Estes novos ricos da economia mundial vieram espalhar generosidade. Com palavras diferentes, os dois tiranos trouxeram a boa nova: estejamos sossegados que os tempos de tormenta hão-de pertencer ao passado, pois os negócios que vieram fazer contêm o milagre da recuperação económica. Se fôssemos todos obedientes a este governo que preza tão más companhias, devíamos sair à rua em sinal de agradecimento. Faríamos uma gigantesca, colectiva genuflexão quando o tirano chinês passasse oculto no automóvel blindado.
Contudo, este governo não é exemplo em nada. Não merece ser respeitado. Esta diplomacia económica mal amanhada em que os negócios são o persuasivo argumento para esquecermos o resto só merece desprezo. Não fico comovido com os dons da diplomacia que preza fazer negócios com gente de tão maus pergaminhos. É dinheiro sujo que aí vem – ou se não é sujo porque pertence a empresas privadas, tem a caução oficial, o que emporcalha a negociata.
Anotei que as polícias foram instruídas pelo governo para porem ao largo os manifestantes que queriam protestar contra as atrocidades do regime chinês. Todos ao mesmo tempo: não se incomoda as visitas. E antes que fossem os endinheirados convidados a darem uma reprimenda a meio de um almoço oficial se a comitiva tivesse sido incomodada por ruidosos manifestantes, trataram de proibir manifestações ou de as autorizar em lugares afastados do trajecto por onde passou a comitiva. Ao menos o ditador e os sequazes andaram por Lisboa convencidos que são gente recomendável, pois os sinais de protesto não se viram. Há gente que só consegue viver em estado de negação.
Mas o mundo não é o casulo em que esta gente vive encerrada. Cá fora, há gente que traz os olhos abertos e recusa o silêncio só porque a comitiva chinesa andou a espalhar esmolas. Quero lá saber que tenham comprado um grossa fatia da dívida pública, ou que tenham dado instruções para empresas chinesas entrarem no capital de empresas caseiras. Essa enxurrada de dinheiro não é o mágico interruptor que apaga a memória. Não, não compra o esquecimento.
O tirano chinês devia ter escolhido outras paragens. Até para evitar a prosápia moralista de certos sacerdotes da extrema-esquerda caviar, que aproveitaram a ocasião para debitar mais umas lições de moral em que as verdades são enquistadas na sua vestimenta absoluta. Alguns atiraram-se aos liberais. Acusam-nos de se terem enamorado do pseudo-capitalismo que aterrou na China, passando uma esponja nos atentados aos direitos humanos. Pelos outros liberais não respondo. Rejeito a sórdida retórica da extrema-esquerda caviar que tenta capitalizar as lições de moral só para si. Para já, a China não é uma economia de mercado. E, mesmo que fosse, dispenso as lições de moral dos Tavares e companhia. Este liberal não transige com o vil metal quando os direitos fundamentais são grosseiramente atropelados.
Ao menos a visita do ditador chinês teve a serventia de oferecer uma imagem aprazível: o silêncio dos comunistas locais. Ao menos uma vez, haveriam de andar de braço dado com os (dizem eles habitualmente) nefandos capitalistas. Outro sapo engolido?
(Funchal)

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