3.11.10

Mau feitio


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O mau feitio não é maldade. É um lugar apertado onde só cabe a escuridão que enluta o espírito. Onde tudo parece uma terra queimada pelas chuvas ácidas que caíram dias a fio. Uma devastação total, tudo calcinado em redor, sem o menor sinal de vida. O ar é fétido, o sol não se levanta por entre a duradoura, espessa penumbra de plúmbeas nuvens. Só rostos sisudos, gente rude, animalescamente calada. Tudo o que os dedos tocam fica logo infectado pelo veneno que se abraçou a todos os poros.
E, no entanto, não pode o enevoado horizonte ser miopia? Onde os olhos se cansam de gente mesquinha, ou da gente muito espairecida e no entanto tão desinteressante, não está um véu que oculta o que importa? O feitio descompõe-se. Extenuado do que uns olhos sempre arregalados trazem às sensações. Mas parece que os olhos são o carrasco que atraiçoa as sensações. Os olhos são um filtro estragado, incapaz de depurar. O corpo anda aos tropeções, teima na sua errância. A certa altura, tudo começa a deixar de interessar. Uma monotonia dilacerante sobe ao altar. E o mau feitio cava uma sepultura ainda mais funda. Onde o corpo tem a tentação de se deitar. E de onde jamais sairia.
Talvez os olhos estejam a precisar de lentes novas. Talvez os olhos estejam carentes de ver outras ruas, de experimentar lugares desconhecidos onde se passeiam os também desconhecidos rostos. Às tantas, até o sol entretanto destapado ganhava uma coloração diferente, o vento ciciava uma melodia que tão cedo não saía do ouvido, os rostos mesmo que acabrunhados e também eles rudes parecessem possuídos de uma resplandecência singular. Há um cansaço imenso que desata uma fileira de interrogações. A mais inquietante de todas: o empedernido mau feitio, sinal da extenuação dos lugares que já se esgotaram?
Ao virar a página, a seguinte vem encimada por outra pertinente pergunta: o mau feitio que se acoberta na extenuação dos lugares conhecidos não é a negação de si mesmo? Haverá uma tremenda tentação para refutar os anos emoldurados no museu das recordações. Haverá a insuportável impressão de fuga para o desconhecido, noutra errância demencial, como se um salto no precipício fosse salvífico. O mau feitio em catadupa alimenta-se da desconsideração do outrora desagradável como dos prometidos, mas desconhecidos amanhãs ilusórios. Dessa coreografia dos tempos ausentes, passado e futuro. Dos tempos que menos importam.
O corpo soçobra diante de um paradoxo: por mais que se aclamem lemas tão nobres, eles são desmentidos todos os dias. As intenções esbarram nas contrariedades do quotidiano, na incapacidade de percorrer os dias de mão dada com as nobilitantes divisas que deviam inspirar a existência. Viver um dia de cada vez é o lema mais apreciado. E o lema quase todos os dias inverificado. Fica por saber onde está a causa e a consequência: é o mau feitio congénito que destrói as boas intenções proclamadas em textos que não passam disso mesmo, de palavras entronizadas no seu perfeito vazio? Ou a incapacidade de sagrar a existência de um dia atrás do outro é o veneno que alimenta o mau feitio que depois toma um lugar inamovível?
Houvesse sempre uma Roma ao dobrar da esquina, como se fosse possível entreabrir um cartaz publicitário e do lado de lá estivesse a desejada Roma para onde o corpo saltasse. E, por um acto de magia, os pós que sordidamente engalanam o mau feitio fossem removidos do corpo, sem vestígios que se vissem, num competente banho higiénico. A irascibilidade é esgotante. Condensa os nós da solidão que se apertam num laço asfixiante. O que está errado é o mau feitio. Não é a erradamente descolorida existência em redor que parece apascentar o ardiloso mau feitio.

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