19.10.10

Os fieis foram à missa de capacete


In http://www.dstsgps.com/upload/imgs/not%C3%ADcias/capacetes.jpg
Imagem mais enternecedora do que a igreja apinhada de fieis com a cabeça protegida por um capacete, só a do colega que apanhei ontem à tarde a escavacar zelosamente a cavidade nasal sem dar conta que os gabinetes têm uma janela que os expõem, quais aquários, aos olhares indiscretos que passam.
Foi em Lisboa, numa paróquia que se serve de uma igreja confiscada quando a monarquia foi deposta pela república. O dono é o ministério das finanças que, à boa maneira laica, tem sido um mau senhorio. O templo degradou-se de tal maneira que cai estuque do tecto, as rachas nas paredes são uma ameaça latente e, sabe-se lá, os anjos e santos que o ornamentam podem a qualquer altura estatelar-se no chão ou nos costados de um inocente que tenha ido fazer as suas preces àquele templo. Não sei se era na freguesia de São Sebastião da Pedreira, mas era aí que fazia sentido. É nas pedreiras que se coloca a dinamite que manda tudo pelos ares. Ora aquela igreja não é à prova dos estilhaços caídos do céu – perdão, do tecto.
O uso dos capacetes não dignifica a crença destes fieis. Pode-se lá admitir que eles se sintam carentes da protecção divina? A muita fé que os alimenta devia ser suficiente para não terem que arriscar a entrada na igreja com a moleirinha protegida por um capacete de trolha. Ia lá deus deixar que gente tão generosa, em culto a si mesmo, fosse vítima de uma derrocada. Terão estes fieis percebido que os capacetes envergados são um ultraje à consabida protecção divina aos que nisso acreditam?
Estes penitentes devem estar arrependidos. O episódio foi parar aos ecrãs da televisão. Pudera: de tão insólito, teria que cativar a atenção da televisão que só o brado apetece noticiar. Deus, para o caso de andar distraído com estas minudências, também estava a ver a RTP àquele dia e àquela hora. O que se confirma é que não são as trovoadas o grito enfurecido de deus. O tempo anda de anticiclone, não está para trovoadas. Se quisermos descobrir os sinais de fúria divina temos que olhar algures. Adivinho, todavia, que deus não ficou contente com a prudência dos crentes que se confunde com desconfiança na protecção divina. Agora é que faz sentido continuarem a entrar no templo com a cabeça resguardada pelo inestético capacete: quem sabe se deus, na sua não revelada faceta vingativa, não manda descer uns vestígios de estuque sobre os capacetes só para assustar. Um sinal divino, portanto.
Mas, nesse caso, as desconfianças dos frequentadores daquela igreja são um punhal cravado na bondade divina. Não lhes são autorizadas as dúvidas existenciais? Ou pode-se confirmar que os dogmas metafísicos são isso mesmo, dogmas que não admitem um beliscão numa vírgula sequer? Nesta notícia, quem fica mal no retrato: a bondade de deus, ou a apreensão dos fieis daquela igreja? Por outro lado, a hierarquia eclesiástica ficou estranhamente muda perante o acontecimento. Podia aproveitar para se atirar ao senhorio, lembrando como aquela igreja fora confiscada nos alvores da república que tanto antipatizou com os privilégios eclesiásticos. Ao contrário, manteve-se um raro silêncio de bispos, arcebispos e cardeais.
Tenho uma teoria para o emudecimento: como o capacete protege a cabeça, podiam os hereges e os provocadores profissionais desatar uma inapropriada comparação com outra cabeça protegida por outro tipo de capacete – de látex, no caso. E lá ia a igreja ser acusada de incoerência: como pode apoiar a prudência craniana dos fieis e recusar a protecção dos que não conseguem reprimir o satânico desejo carnal?

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