20.10.10

Banalidades e baunilha


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Falemos, então, de banalidades. Ele há lá alguma serventia em massacrar o pensamento com as coisas muito sérias que andam em bolandas pelos interstícios do universo? De banalidades, falemos de banalidades. Que o pensamento precisa de se aligeirar. Precisa do ar fresco que entra pela janela que teimosamente se mantinha encerrada. Nem que o fresco ar saiba a nada, deixemo-lo entrar, esfregar-se pelo rosto onde crescem as rugas de todos os dias.
Encantemo-nos com um peixe que se debate na extremidade da cana de pesca, a grotesca imagem do anzol a perfurar-lhe a boca. Como numa fotografia de um valente matador a ser perfurado pela haste do touro, que entrou pelo lado inferior da mandíbula e saiu pelo céu da boca. Agredir os olhos com a imagem do peixe a rabear aflitivamente os derradeiros suspiros antes de aterrar já cadáver no prato dos comensais. E a água salgada, que jamais seria respirada por aquele peixe?
Ou um eléctrico que retrata a cidade ancestral, o eléctrico com utilidade antropológica, só para os turistas, arrastando-se lentamente pelas ruas. No seu amarelo torrado, o cheiro típico das madeiras sua matéria-prima de excelência, o ruído metálico dos rodados a sulcarem os carris. Já não seguem viagem apinhados, como há quase trinta anos quando subiam e desciam a Avenida da Boavista e os miúdos saltavam para o degrau do lado da porta fechada num arremedo do que hoje seria actividade radical. Quantos desses miúdos são hoje afamados doutores em invejável cargo empresarial, quantos já partiram do mundo depois de uma overdose fatal?
Ou os passos errantes num centro comercial da moda, num daqueles dias proibidos para deixar o corpo meter-se no centro comercial, depois de um suicida, ou apenas masoquista impulso o ter empurrado até ao tremendo ajuntamento. Só para observar a gente que passa. A gente que se detém à frente das lojas, das lojas de miudezas, ou das lojas da roupa que há-de estar quase na estação certa, ou das ourivesarias onde todos os sonhos femininos passam em fila na tela mental enquanto a sorte ao jogo não aparece. As tão heterogéneas pessoas que desfilam. Homens sentados nos bancos a meio do corredor que esboçam um frémito de impaciência enquanto as consortes se demoram em mais outra loja. Raparigas tão feias em demanda do príncipe encantado que tanto demora. Gente indiferente, sentada nos bancos da multitudinária esplanada, enquanto o cheiro a pipocas que vem do cinema contagia o enjoo.
Ou, ainda, procurar a banalidade que se derrama do gelado de baunilha a derreter por acção do calor que se pôs inesperadamente. Como se os olhos de repente fossem um diligente microscópio. Conseguiam ver o esbatimento dos cristais de gelo amarelecidos e uma câmara de vídeo filmasse o processo de descongelação do sorvete. Para depois, em tratamento de imagem, o filme ser manipulado consoante os humores do momento. Ora avançando as imagens a uma velocidade alucinante, os vinte minutos do filme reduzidos a um singelo minuto, num ápice o gelado derretido numa papa líquida. Ora capturando cada fracção de segundo para retratar em câmara lenta a metamorfose do sorvete em estado líquido, só para ver os cristais de gelo a avançarem numa elasticidade que anuncia o estado líquido.
E glória às banalidades, destas e doutro calibre, que se passeiam tão vãs pelos interstícios do universo. Pois há tantas vezes que o olhar se deve desviar para as banalidades do universo, subitamente emproadas à condição de convenientes coisas importantes. Viva, viva as banalidades.

1 comentário:

Anónimo disse...

Estás quase lá, banalidades, é isso, parece-me bem! :) Camélia