22.9.10

Os remorsos


In http://www.psychologytoday.com/files/u45/guilt.jpg
Os remorsos são uma consumição. Entram pelos poros da consciência. São como balas penetrantes que ficam a corroer os interstícios da memória. Estão sempre acirrados. Dentes de leão cravados na carne, uma ferida que nunca chega a fazer-se cicatriz. Os remorsos são o maior sofrimento do envelhecimento. Remoem as entranhas, fazem as úlceras e fabricam as células envenenadas que acabam por arruinar o corpo. Estão lá, indeléveis, enfeitando o quadro das memórias com cores desagradáveis.
Não transigem com o arrependimento. Não há maneira de apagar os actos cometidos, os actos que transitam no tempo póstumo através da excruciante dor da culpa. Essa culpa transida, que amarrota a existência e semeia uma angústia insuportável. O caudal que transporta os remorsos é um constante rumorejar nos recantos mais escondidos do conhecimento. Cicia os segredos que nem as profundezas da intimidade queriam recordar. Arrependimento algum aniquila a culpa. Ela tremula, bem alta, no mais alto do mastro que pontua o caminho do desassossego.
E essa culpa, essa tão profunda a interna culpa, é o miradouro de onde se avista toda uma incapacidade. Lá do alto do miradouro, patente a demissão dos actos respeitáveis. A própria existência parece ter perdido o rasto da decência. Da decência como vem nos manuais dos bons costumes. A certa altura, emerge uma pulsão para derrotar os remorsos. O corpo entrega-se a uma interna batalha de dois hemisférios. Um recorda a pungência da culpa, atirando-se a uma introspecção que grita constantemente o rumor lânguido dos remorsos incendiários. O outro é um titânico esforço para dobrar a página. Para seguir em frente com a franqueza de quem não desmente os tempos idos que apascentam a interior desonra sem disso fazer perene sentença que amesquinha todo um porvir à espera.
É nesta confluência de antípodas comportamentais que, em demanda do manancial de uma existência diferente, a sede de asfixiar a tórrida lava vulcânica dos remorsos esboça um estado de negação. As veias mudam-se para alimentar o esquecimento. Ou adulteram-se para que a própria essência do ser transija com os actos reprováveis. As culpas interiores diluem-se na projecção do ser para o exterior. Se ele há tanto cometido pelos outros, se a relatividade das sentenças que ajuízam os actos diminui o opróbrio lançado pelos outros, por que não haveriam os remorsos de morrer diluídos na transmutação do ser?
De nada adianta a eterna peregrinação de um corpo que se arrasta cheio de chagas, dobrado pelo peso dos remorsos. Pode ser a tanta exigência interior que aquece a água que recebe a fervura dos remorsos. Mas não nos ensinam que a perfeição é a negação da humanidade? Já sobram as dores que consomem as veias num incêndio sibilante, a vergonha interior que obriga a resguardar os arrependimentos do conhecimento alheio (mesmo dos que são mais próximos). Prolongar o padecimento na voluntária entrega à culpa, como se essa entrega fosse o nutriente para apagar da lembrança os actos execráveis, é um embuste do tamanho do mundo. Não é solução para coisa alguma. Tudo o que os remorsos conseguem é abrir a janela aos abutres que adejam, ameaçadores, à espera que o corpo desista.
Quem inventou a culpa que fica a pesar eternamente na lucidez do pensamento devia ser privado do seu lugar na história da humanidade. 

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