13.8.10

Manual da transgressão


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As coisas são resolvidas, decididas, pelo código das proibições. Por isso há uma certa tentação pelo que as convenções não permitem – no terreiro dos lugares-comuns, dir-se-ia a tentação do fruto proibido. A apetecível transgressão. Se calhar, nem vem ao caso tratar-se de rebeldia juvenil mal resolvida. É a fruição da liberdade acossada por um espartilho de proibições, de regras de conduta que nos toureiam docemente dentro da praça onde os corredores do admissível se estreitam a cada nova invenção dos engenheiros sociais.
A manta de retalhos de leis e regulamentos que proíbem a torto e a direito, e das outras que impõem condutas sob o jugo da multa ou até do cárcere, são a privação da livre existência. Apetece o dissídio, romper a apertada malha das imposições e das proibições que cerca por todos os lados. O corpo atira-se espontaneamente para as águas onde navegam as transgressões. Espontaneamente. As curas estão todas nas condutas reprováveis. O mundo deixa de ser aquele lugar onde devemos ter os passos todos certos, sem haver passos em falso que são implacavelmente castigados pelos muito atentos zeladores do rebanho obediente.
Talvez seja a ambição de romper com os exagerados passos certos quando a idade se punha a jeito para a rebelde transgressão – um arrependimento de oportunidades não apanhadas entre os dedos. Talvez seja devido, também, ao ar cada vez mais irrespirável onde se amontoam as regras, as proibições, a legislação sobre tudo e mais alguma coisa. Como se nada, mesmo nada, escapasse ao jugo vigilante do legislador que entrou no corpo dos modernos engenheiros sociais. Só apetece transitar pelas vias que são vedadas e patrulhadas pelos beleguins das boas condutas. Desafiando-os, mais às regras e proscrições que pastoreiam. No jogo do toca e foge, pisando o risco sem temer a proeminência ofegante que se conjuga com os milímetros que separam do profundo precipício.
A par da transgressão, o saboroso riso de escárnio na cara dos paternalistas curadores do nosso bem-estar. Que raio de pretensão têm estes mentores de um rebanho obediente, a de julgar que são imprescindíveis para nos conduzirem através dos bons caminhos ditados pelas numerosas regras de conduta e proibições. É o paradoxo da modernidade. Tudo parece fluir no sentido contrário da maré. Tanta a informação, tanta a matéria-prima que nos habilita a sermos autónomos, seres pensantes capazes de discernir o que satisfaz o bem-estar individual. E, todavia, somos esmagados pela prolixa actividade dos engenheiros sociais que interferem e interferem, nisto e naquilo, tartamudeando as liberdades com o seu baraço impositivo. Não pode a sua actividade ser dispensada, assim ajuízam numa autocontemplação da sua baça magnificência. Para o bem da humanidade. Para o avanço da humanidade. Grotesco paradoxo este, quando os passos em frente na civilização dependem da dependência dos actores em relação aos agentes.
Este quadro traiçoeiramente luminoso é o cenário para todas as transgressões. Uma proibição convida ao seu ostensivo espezinhar. O clarão que se incendeia naquele quadro de putativa civilização é um logro. Apenas um pérfido lençol que esconde um céu sombrio, o céu que acabrunha a existência, a individualidade. Ao ser atraído ao quadro, e uma vez capturado dentro dele, sobra a dignidade de ser insurgente. Ou a cedência ao infindável trilho de regras e proibições que perpassa a subordinação do ser ao imaginário do colectivo. Através do qual os que se entronizam no papel de modernos condutores de almas abusam do poder que açambarcaram.
Chame-se-lhe rebeldia, anomia, anarquia, transgressão, o império da desordem, o que seja. A transgressão que aparece, convidativa, a irromper no horizonte dominado pelo marasmo segue um manual onde a única regra é desfiar as regras debruadas pelo ouro da autoridade legal.  

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