19.7.10

Corninhos ao sol


In http://www.musica.iol.pt/multimedia/oratvi/multimedia/imagem/id/13141227/400
Um melómano (mas não no sentido clássico da palavra) passa por numerosos sacrifícios se aterra num dos festivais de Verão. Pode ser da idade que arqueia o dorso, já pouco paciente para os desvarios adolescentes, para as inconsequências etílicas, para os empurrões da gente que fura e fura para compensar o atraso e chegar à frente no palco.
Já não ia a um festival de Verão há seis anos. Admito: já me apetecia voltar a experimentar um festival destes, ainda que fosse forte a desconfiança de revisitar sensações passadas, sensações desagradáveis. O cartaz era convidativo. Meti os pés ao caminho. Convencido que tudo depende da mentalização dos dias anteriores. Impõe-se o chamado “espírito festivaleiro” – que é como quem diz, deitar coisas desagradáveis para trás das costas. Senão, nem a música se aprecia.
Há sinais identitários dos festivais de Verão que ultrapassam a compreensão. Não vou opinar sobre as bebedeiras descomunais que jovenzinhos e já não tão jovens carregam às costas pelo recinto. Imagino, no dia seguinte, a perguntarem-lhes o que ouviram na noite anterior. E a resposta, estremunhada pela ressaca mal curtida: “não sei”. Ele há formas mais baratas de apanhar a carraspana. Há um sinal repetido à exaustão que temperou uma certa perplexidade: os jovenzinhos vão para os concertos e, durante o espectáculo, fartam-se de esvoaçar os dedos das duas mãos em forma de corninhos.
Ora, ou eu desconheço um significado oculto e, porventura, modernaço dos corninhos ostentados pelos dedos da juventude, ou fico sem entender por que se dão ao trabalho de infestar os ouvidos com uma música de que não gostam. Serão os novos estóicos? A perturbação de significados adensa-se depois de uma observação mais cuidada. A malta que ensaiava uma estranha coreografia em que os corninhos são ingrediente que não pode faltar, dançava em compasso com a música. Alguns deles, em transe, possuídos pelo deus da cerveja patrocinadora do evento. Ou – entendo agora – possuídos pelo demónio, daí a coreografia que encena o gesto que personifica o Satanás. Noutros, aparentemente sóbrios, uma música mais conhecida subia-lhes a excitação através dos movimentos mais enérgicos dos corninhos em destacada pose nas mãos estendidas ao alto.
Concluí, então, que se cometeu uma injustiça com o enorme Manuel Pinho, esse incompreendido ministro da economia que foi empurrado para a porta de demissão quando, dentro da casa da democracia e farto de provocações, dirigiu uns corninhos a um deputado da extrema-esquerda caviar. Ainda olhei em redor à procura do Pinho, esse inventor do “Allgarve”, o ministro que tentou captar investimentos chineses acenando com os salários miseráveis que por cá se praticam. Mas consta que o homem é mais dado ao ambiente selecto do jet set, desdobrando-se em aparições nas revistas cor-de-rosa.
A linguagem reinventa-se, como sabemos. É um sinal dos tempos que recusam a inércia. Nas suas múltiplas formas, a linguagem também se expressa pelos sinais que fazemos. Porventura acabámos de reinventar, com a incalculável ajuda das gerações pós-imberbes, a linguagem simbólica que se sedimenta nos sinais exteriorizados. É como na Bulgária, onde acenar com a cabeça de cima para baixo é o contrário do que estamos habituados (em vez de sim, significa não). Os corninhos paradoxalmente assisados vertidos pelos dedos bamboleantes não são ofensa nenhuma. A crer pelo êxtase da malta que energicamente os coreografava durante os concertos, são sinal de coisa boa.
Um dia destes, se fizermos corninhos a um conhecido (ou até a um desconhecido), do lado de lá esboçar-se-á um largo sorriso que enche o ego de contentamento. Que melhor cumprimento nos podem fazer?

Sem comentários: