14.6.10

Impossíveis, não são os sonhos


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Impossível há-de ser qualquer coisa terrena. Qualquer coisa que passe diante dos olhos enquanto estão em acordada vigília. Um cão a latir. Um mendigo a vegetar na desesperança. Um executivo, irradiando autoconfiança enquanto passeia os sinais exteriores de sucesso. A jovem beldade aspirante ao néon das passerelles. Duas velhinhas a coscuvilharem à porta do prédio, enquanto o miúdo faz piruetas no skate. O jovem pastor evangélico a debitar máximas bíblicas enquanto o séquito de outrora ateus aplaude entusiasmado (talvez sem atingir a hermenêutica das palavras). O craque da bola que ostenta milionária bijutaria e atropela a gramática para os microfones que se estendem à sua frente. O homem boçal que atira para o chão o invólucro plástico do maço de tabaco quando tinha a meia dúzia de metros um caixote do lixo.
Alguns possíveis. Uns para lamentar, outros para simplesmente constatar. Mas também há os possíveis que ludibriam o niilismo persistente. As paisagens idílicas. Um sol com cores mágicas que se compõe depois de dias intermináveis de chuva. Ou uma chuva retemperadora que interrompe o cansativo estio. O mar. Bravio em dias de tempestade, quando as ondas se encavalitam nas esporas do vento e compõem um cenário arrebatador, um sobressalto que acalma. Ou o mar sossegado, o mar chão que é regaço das aves que repousam em dia ensolarado. As pessoas que valem a pena. Músicos, poetas, escritores, pintores, das artes todas que mereçam elogios. Ou, tão simplesmente, heróis que são os que guardamos no canto muito escondido onde está o infinito universo dos afectos.
Mas há os impossíveis. Os idealismos. O poço fundo das utopias. Lá, onde o pensamento se esboça nos tortuosos corredores das impossibilidades. O pensamento não se deixa derrotar pelas contingências do mundo fervente. Combate a anestesia da realidade. É acutilante, impiedoso com os contornos do mundo táctil. Acusa o mundo em redor de um torpor contagiante, só para que nos apaziguemos com os limites das possibilidades que assim nos são encenadas. Cabe ao pensamento derrubar os apertados muros dos possíveis. Ao pensamento, ou aos sonhos. Que são a forma sossegada, e espontânea, de pontuar as impossibilidades com um travo de possível. E se um sonho é pensamento, não acabamos por desaguar na mesma foz? E o possível, é tudo o que interessa?
Tanto faz que os sonhos sejam os insondáveis interstícios que acontecem a meio do sono, como os sonhos que forjamos acordados. Os primeiros acasalam-se com nutrientes da impossibilidade em estado puro quando se entretecem em obtusas formas. Os segundos são a fuga ao torpor da realidade dolente. Há quem diga que se trata de alienação. Há quem acuse esses acordados sonhos: são simples alucinações que não resolvem as dores insuportáveis do mundo que dá as rotineiras voltas. Um ensimesmar que rima com válvula de escape. Os problemas não são tomados pelos cornos, de frente como convém aos corajosos. São congelados, enquanto o pensamento escorrega para devaneios. Uma sentença cruel: estes sonhos acordados tingem-se da covardia no seu estado mais puro.
O mal não está em escorregar para a alienação dos sonhos, quer dos que se entretêm a perceber os absurdos sonhos do sono, quer dos que se entregam à letargia dos sonhos acordados. O pior está nos juízos de valor que apoucam os sonhos, sobretudo os sonhos acordados. É que a pior maleita da espécie é a falta de imaginação. Ora, em sonhos, a imaginação é de uma intensidade febril. Não há mal em nos refugiarmos dos contornos do mundo através dos dedos dos sonhos que tecemos acordados. Às vezes é assim que encontramos as margens da criatividade.
De quantos sonhos acordados se fazem as artes que inebriam os pueris pastores da realidade? De quantas impossibilidades se compõem?

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