31.5.10

Pentear macacos


In http://www.dgabc.com.br/2008/files/noticia/5770357.JPG
Ah, a tanta prosápia que mascara a indigência. O saltimbanco dá à perna do piadismo fácil. Estamos nas águas do engraçadismo. Os vorazes revólveres da inteligência rasteira em acelerada função. Trocadilhos que se encenam em arremedos de soberba intelectual deixam-nos inertes. Devíamos (mas não conseguimos) ter a seguinte reacção: uns segundos de hesitação para a massa cinzenta digerir as palavras que se compõem no trocadilho; o fim da hesitação naquele clique que devolve o entendimento; por fim, devíamos – mas não fazemos – esboçar um sorriso ao mesmo tempo que aplaudíamos a notável exibição de intelecto.
Eu concordo que o melhor humor é o inteligente. É o mais difícil. Não só de fazer; também de fazer compreender em quem seja seu destinatário. E como o humor anda na moda (nada contra, por sinal, que andamos precisados de boa disposição para esquecer o resto), um dia destes os candidatos a humoristas excedem a população residente.
Os engraçados que transpiram por todos os poros uma boa disposição contagiante esmagam-nos com manifestações de humor subtil. Jogam com as palavras, como se estivessem a fornecer as pistas para as palavras cruzadas que somos convidados a decifrar se quisermos entender o seu subtil humor. À saída do cruzamento, se somos esmagados é pela tremenda indigência mental de quem se quer fazer passar por mente brilhante. Há gente que peca por falar. Na sua boca, as palavras envenenam-se no armadilha do humor mal amanhado – do humor sem h. Acham-se engraçados, mas o que são é desastrados.
Quatro dias em viagem, sulcando estradas sinuosas enquanto entravam pelos ouvidos as patranhas de inteligência debitadas por radialistas convencidos do seu engraçadismo, tem este efeito de convalescença ao contrário. Os radialistas (armados em jornalistas) apostam no estilo descontraído. O relaxe através das piadas entre eles, do puzzle de palavras que funcionava como palavras cruzadas só ao alcance da destreza de alguns. A acumulação de momentos ímpares de esmagamento intelectual: os trocadilhos para impressionar, do lado de lá os ouvintes numa espécie de competição invisível através dos segundos gastos para decifrar a charada impregnada de discreto humor. Os “jornalistas” diriam, em sua defesa, que faz parte do “estilo aligeirado”. Talvez seja melhor, nem que sacrifique a objectividade e o profissionalismo. A menos que os pontos cardeais da profissão tenham sido redesenhados e eu não dei conta.
Talvez estejamos a precisar destes radialistas encartados no humor de pacotilha para outras coberturas jornalísticas. De eleições, por exemplo. Fariam furor. Para palhaço, palhaço e meio. Muito caminho já foi rasgado. Aqueles radialistas pertencem a uma estação pública que trata com seriedade a cobertura de eventos sérios. Está bom de ver, naqueles quatro dias acompanhei um evento – como direi? – “pouco sério”. Se por “pouco sério” se traduzir a palavra “ócio”. O ócio merece tratamento jornalístico aligeirado, carregado de humor e, de preferência, “humor inteligente”.
Não venham com a ladainha do costume, que com coisa sérias não se parodia. Que as eleições são tão importante que não se compadecem com uma cobertura aligeirada, vestida dos pés à cabeça com o tal humor supostamente inteligente. Eu apostava que aqueles radialistas fariam furor na cobertura de noites eleitorais. Por causa da lógica dos palhaços emparelhados.

28.5.10

Contos de erudição


In http://livroseafins.com/wp-content/uploads/2008/02/josse_webjpg.jpg
Como é belo parecer erudito. Esmagar a audiência com provas de literato. Fazer muitas, e a propósito ou mesmo a despropósito (que interessa?), citações dos consagrados. Ornamentas um pensamento com as doutas palavras que pertencem aos outros. E, portanto, diminuis as tuas. As pessoas ficam boquiabertas com tamanha erudição, com as pinceladas de sapiência que chegam debruadas nas palavras dos cultos.
Há quem diga que a arte só está ao alcance dos que vivem embebidos em toneladas de cultura. O avassalador conhecimento dos escritores que fica sempre bem citar é credencial das muitas pestanas gastas entre as páginas amarelecidas dos clássicos. Notas a admiração da audiência. Sabes que a audiência, à saída, comenta a exibição de erudição. As palavras que pedes emprestadas aos sábios cimentam a tua autoridade. Mas não será uma autoridade pedida de empréstimo, essa que pavoneias?
O que as pessoas deviam saber é que é tão fácil sermos bem parecidos na erudição! Sabes, na secretária lá de casa tenho um poemário que é de onde verto versos do grande Mário de Cesariny. (O do ano passado era dos vários heterónimos do Fernando Pessoa.) E – sabes? – lá nos armários também se empilham livros. Alguns com sublinhados que são tão úteis para esmagar os outros com o nosso conhecimento tão vasto. Ou, já agora, deves saber que essa maravilhosa invenção chamada Internet põe à nossa disposição citadores.
Eu sei que às vezes é irreprimível a exibição de erudição. É como os gatos que marcam território através de uns esguichos de urina contra um muro aqui, uma ramada ali. A delimitação do território tanto serve para medir o pulso ao interlocutor como para o domar através do ror de leitura armazenada em memória prodigiosa. Se o interlocutor entra na esgrima de citações, as tuas entradas de leão podem ter saídas de sendeiro. À cautela, entras de mansinho na ostentação erudita. Não vá a audiência derrotar-te aos pontos – e o pior que pode acontecer é estares diante de alguém ainda mais culto. É a sensação de quem bebe do veneno que tentou dar a provar. Por mais que tentes, não consegues coçar os olhos com os cotovelos.
Às vezes, sei-o, aprisiona-se a humildade numa vara de três paus. Queres palco, reconhecimento, uma audiência rendida. Entesa-te o intelecto. Ele há coisa mais apetecível que o charme intelectual? Só que das vezes muitas em que escorregas para as douradas pílulas de erudição em forma de citação alheia, não tens noção do exagero. Soa a arrogância intelectual. Eu cá desconfio quando me falam muito através das palavras que foram ditas pelos outros. Acho um refúgio, não a maioridade do conhecimento.
Por estas alturas farias o teu juízo lapidar: que destoo por desqualificação letrada. Se isso te apraz, conserva o troféu. Não ando aqui em frívolas competições de Trivial Pursuit, ou naqueles simplórios testes que nos vendem a banha da cobra do QI. Se te contenta, até digo que fico estarrecido com o classicismo que alardeias. Devem ter sido dias a fio de leitura empinada, ou apenas uma leitura a propósito feita na véspera só para dar a impressão que a tua bagagem cultural é do tamanho de um petroleiro. Tenho para mim que o rasgo se consegue com as palavras que ungimos com os nossos pessoais dedos, aquelas que ficam registadas na aura do conhecimento original.
O aluvião erudita que em ti desabrocha tem pouca serventia. É conhecimento que se desfaz ao estalar o verniz em que se encasula. Poderás saber muito das palavras que os outros afamaram. Poderás saber onde encontrá-las (se nos citadores da Internet ou nos livros cuidadosamente sublinhados, não interessa). Por cima dessa fasquia, sobra pouco. Uma espuma inconsequente.
(Em Vilamoura)

27.5.10

Espanhuel



In http://i.s8.com.br/images/games/cover/img4/1507484_4.jpg
Lembram-se, quando andávamos na escola, e havia uma personagem que tinha a mania que era maior do que a sua estatura? O pavão sem sentido que destilava uma putativa sabedoria que para os outros, mais discretos e renitentes no envaidecimento, era motivo de galhofa pelo constante ridículo. E depois, alvo do sarcasmo dos outros, punha-se a um canto, compungido, pondo beicinho de vítima injustiçada, rodeado pelo invariável séquito que lhe amparava os devaneios mais altos do que a sua estatura.
São estas memórias que sobem à superfície quando passo os olhos por vídeos que andam pela Internet com a última performance poliglota do senhor primeiro-ministro. Como agora já não vejo noticiários na televisão, só tomo contacto com o estado maravilhoso da pátria mercê da presciência do senhor primeiro-ministro através dos vídeos que vão aparecendo por aí. Há dias foi de visita a Espanha. Pacóvio como o conhecemos (e só ele parece não dar conta que o é), quis brilhar falando o idioma dos vizinhos. “Falando” é um funesto elogio ao que sua excelência foi debitando – num jantar com empresários, numa cimeira com líderes latino-americanos, numa entrevista matinal num programa da amiga TVE. Se aquilo era castelhano, eu sou proficiente em finlandês.
Entretanto, a pátria discorre sobre as capacidades poliglotas do timoneiro. O banzé que se pôs, estava sua excelência a pedi-lo. Manda a prudência que não falemos do que não sabemos. Isto deve-se aplicar às línguas. Na etiqueta diplomática, aos líderes é consentido falarem na língua nativa quando estão de visita a terra estrangeira. O imperativo redobra quando o líder – como dizê-lo de forma simpática? – não está à vontade com o idioma do país anfitrião. Mas a fanfarronice destrói as cautelas. O mito do homem modernaço, muito à frente de nós, simples mortais sem visão, irrompe que nem um furacão. A urgência em mostrar uma imagem maior do que a sua estatura produz um eco contraproducente: todas as suas fragilidades, ali expostas. Ninguém as tem que destapar. A personagem trata de o fazer com a prosápia típica dos que se autocontemplam como figuras ímpares.
Eu divirto-me. Farto-me de rir de cada vez que abro vídeos com a performance poliglota do indivíduo. Inadvertidamente, ele faz-nos um favor: com a austeridade que a Alemanha mandou aplicar a deprimir-nos tanto, temos que arranjar motivos para desatar à gargalhada. O timoneiro oferece-nos de graça a graça de que andamos carenciados.
Também me é dado a saber que já houve quem viesse em sua defesa. É a coorte que tudo aplaca a transigir outra vez. Inventam-se argumentos que disfarcem a falta de jeito do indivíduo para falar castelhano. Alguns dizem que é um acto de humildade, o arrojo de esboçar umas palavras parecidas com o idioma de Cervantes. Mas aquilo nem portunhol é. É espanhuel puro: uma interminável sucessão de atropelos à língua, apenas português com sotaque espanhol. Os seguidores agarram-se ao aplauso que a performance terá motivado entre alguns do outro lado da fronteira, decerto irmanados por solidariedade socialista. E aproveitam o episódio risível para edificar mais um acto de heroicidade que reforça a imagem (mas só a imagem) de político predestinado, grande líder histórico como só aparece em gestas contadas. Que sua excelência tenha caído no ridículo sem se aperceber parece mais um acto do estado de negação em que andamos a reboque do próprio timoneiro. (E como não há ninguém no staff que, de mansinho, lhe faça notar o ridículo, é algo que me transcende.)
Às vezes, a música aleatoriamente disparada pelo iPod cai que nem uma luva. À medida que este texto estava a ser escrito, calhou em sorte ouvir “I Wanna Be Adored” dos Stones Roses. Bingo!

26.5.10

A degola dos motoristas


In http://londonbutlerservices.com/images/chauffeur-door.jpg
Ao que isto chegou! A austeridade com o traço do novo governo britânico corta a eito. Os senhores ministros vão passar a ir a pé ou de transporte público para o ministério. Não há chauffeurs para ninguém. Eu acho bem que se acabem as regalias balofas, aquelas benesses muito aristocráticas transversais às monarquias como às repúblicas, aos democratas como aos tiranos. Ou somos todos iguais a sério, ou se é só para o sermos na letra dos livros que embelezam as doutrinas oficiais, não passa de letra morta.
Esta austeridade vai dar água pela barba. Não podemos fugir da etimologia: austeridade é sacrifício. No emagrecimento das contas, os países vão cortar a torto e a direito nas despesas (os que têm coragem para o fazer). Levo o pensamento além deste tempo, espreito por cima da devastação desta austeridade que terça tesouras com gastos públicos. Haverá um batalhão de gente desocupada. Os motoristas hoje, os jardineiros amanhã. Depois de amanhã (ou, de preferência, hoje) contínuos que se limitam a tomar conta da porta da entrada e a abri-la para sua excelência o ministro passar sem se incomodar. O afilhado do primo da cozinheira já não terá sinecura inútil à sua espera lá na autarquia. Outra vez: esta crise será reparadora.
E os motoristas da coroa britânica, terão sindicato representativo? Ainda que tenham; como vão organizar o protesto que se espera? Recusar-se-ão a levar sua excelência ao destino, entregando-lhe a chave do carro para ele ou ela se desenrascar?
Os ministros e secretários de Estado terão que se meter ao volante quando forem em viagem, ou apanhar o comboio que estiver à mão. Não são diferentes da gente comum, que não se faz transportar com a mania das grandezas. É algo que me transtorna: aquela gente que pega no volante antes de lhe chegar a pimenta do poder ao nariz e que, uma vez empoleirada no totem do poder, se abarbata com as regalias inerentes. Ter motorista é sinal do muito poder que repousa nas nossas mãos. Ora, nesta vida não somos duas personalidades diferentes. Na impossibilidade (não é improbabilidade) de algum dia amesendar no poder, disto estava certo: ninguém me tirava das mãos o volante do automóvel a que tivesse direito.
Temos, contudo, um grave problema social entre as mãos. Vamos supor que a degola dos motoristas se contagia a outros países. É toda uma instituição que se evapora. O que será feito dos homens habituados a levar suas excelências daqui para ali atropelando o código da estrada, espremendo a abonada coudelaria debaixo do pé direito? Vão meter as pantufas, encafuar-se no sofá com o comando da televisão por cabo na mão e mergulhar numa profunda depressão? É que voar pelas estradas e ruas àquelas velocidades, digamos, ilegais, vicia em adrenalina.
Que outras regalias extravagantes se seguem no abate delicioso? Viagens de avião em classe económica, suas excelências sentadas ao lado da maralha. Hotéis de três, quatro estrelas no máximo. Restaurantes modestos e sem vinhos escolhidos por escansão. Senhas de gasolina à medida de quilometragem mensal que não fira a vista. Do lado de lá, do lado das regalias (ou da condescendência com a obscenidade dos gastos principescos dos Estados), dirão que isto são umas migalhas. Ainda que seja, ao menos temos – uma vez que seja – os de cima a dar um exemplo que mereça ser seguido.
Há que anuir que estes são episódios de um país normal. Não sei se posso arriscar que nos outros, onde se mantiver o catálogo de regalias extravagantes, o apego ao poder é ao mesmo tempo um oportunismo revelador. Ou o que por cá se chama, com indisfarçável ponta de ironia, é fartar vilanagem. 

25.5.10

Erupção corporal


In http://www.imotion.com.br/imagens/data/media/77/9816atleta.jpg
Às horas incandescentes, responde o corpo com um estremecimento silencioso. Uma vaga que cresce das entranhas e se insinua em passos lentos, quase imperceptíveis. Às duas por três, é uma torrente de lava indomável, um corpo desatinado, encadeado pela tórrida, enrubescida luz que filtra as emoções.
O corpo treme, todo másculo, desmonta-se na sua fragilidade composta. No frémito do instante, ninguém diria tratar-se de um corpo frágil; diriam, diante da atlética exibição de vitalidade, que era um mastodôntico ser. Como se ali houvesse um vulcão reprimido, o vulcão sedento de jorrar a lava comprimida que há tanto tempo se prometia oxigenar. A lividez da pele esconde a matéria incandescente que leveda pelas veias. Palpitam, as veias, fervidas pelo hastear da exaltação corporal. As emoções já não decantadas, nem razão nenhuma a aflorar. Os instintos, domadores do palco.
Do lado de fora, os amantes da pacatez aprestam-se a censurar a selvajaria que se monta em dois actos. Os instintos são a fornalha onde se consomem em lume brando os derradeiros vestígios da racionalidade. Ó sensação maldita! Espreitam os outros corpos enredados na coreografia dos sentidos inanimados, todos os passos caóticos imersos numa paradoxal harmonia, a pele suada que se roça noutra pele suada em faísca que é detonador da combustão carnal. Os apoderados pelo medo, afivelados pelo torniquete da racionalidade, tomam-se de nojo pela catilinária dos corpos. Ficam perplexos: como há quem se não entedie com a dança eterna dos corpos?
É uma cultura jónica, atlética, a sublime exaltação das capacidades físicas. Mas não é tanta superfluidade quanto se suponha: há um lugar reservado à mesa para os enredos da mente. Não é tudo maquinal como os gestos, desordenados ou não, que se ensaiam na coreografia carnal. Sobrepõe-se uma dialéctica sagaz. A mente em constante desafio das capacidades do corpo. Desafia-o a alçar mais alto a fasquia dos seus limites. É como se houvesse um corpo dentro do corpo, um em constante provocação das capacidades do outro, o primeiro a semear a mutação do segundo.
E ele agiganta-se, supera-se, mais um centímetro a fasquia empurrada para cima. Um dia, a erupção corporal já não dobra o limite da véspera. Por fim, o limite alcançado, por tentativa e erro. Depois já só sobra o ocaso, um prometido ocaso. É como um rio caudaloso que engrossa com o pródigo manancial das chuvas. Trepa às margens e coloniza os prados em redor, o rio poderoso feito largo espelho de água. Acalma-se umas semanas até as demoradas chuvas invernais recuarem no seu intento e os lençóis freáticos enxugarem. O rio regressa ao leito, devolve os terrenos que não foram criados para seu regaço. As águas amansam e liquefaz-se a torrente caudalosa que amedrontava, tamanha a energia em consumição das pedras e galhos dobrados.
O corpo, outrora uma imensidão de perder de vista, viveiro de façanhas que ora desaguavam em aplauso, ora em inveja, arqueia-se na sua curva descendente. Oxalá as células fossem até ao infinito, uma constante linha crescente que habilitasse o sucessivo desafiar das capacidades. Não é sua natureza. O corpo gasta-se, envelhece, dissolvem-se as suas capacidades. Dizem que o último grito da moda é a medicina regenerativa. Dizem que podemos adiar o envelhecimento do corpo, retardar a maldita curva descendente que augura um poente de perplexidade. Nem essa medicina fará milagres. Ela não será capaz de prolongar a embriaguez carnal onde sobressaem os corpos que se levitam ao limite, mais ao limite, até ao limite que se julgara impensável.
Entre o pior dos males, que se retenha o que não ilude a própria espessura do corpo. O truque que conta não é a medicina regenerativa. É a compreensão da lassidão do corpo quando, enfim, a curva descendente espreitar no horizonte.

24.5.10

Treta


In http://files.manchestervilefc.webnode.com.br/200000061-8ae808be23/trofeu_quem.jpg
O fair play é uma treta. Por mais campanhas oficiais que tentem o pedagógico convencimento que só ganhar não conta – é preciso ser leal com o adversário. Por mais que sejam proclamadas nobres intenções entre os intérpretes dos desportos, mas só para inglês ver. Quando os desportistas estão imersos no auge da competição, só conta o triunfo.
Do lado de fora, há uma multidão de espectadores enfurecidos a exigir o atropelo do fair play. Ainda me lembro, num dos últimos jogos de futebol a que assisti no local, como a turba faminta invectivava os adversários, o código de impropérios à mão de semear, com uma imaginativa veia que faria corar de vergonha o mais dos criativos dos poetas. Ainda me lembro: um anormal à minha frente, a repetir vezes sem conta “parte-lhe as duas pernas” – o que, no discernimento daquela criatura, um atleta da sua equipa devia fazer a todos os adversários que aparecessem pela frente. Vão-me dizer, em pose complacente, é a exaltação da competição que cega os mais furiosamente adeptos. E dizem-se palavras impensadas, como todos dizemos palavras impensadas na excitação do momento.
Talvez seja da impossibilidade de distanciamento dos que se incendeiam por dentro com estas coisas do desporto. Os que andam lá dentro, como são profissionais, tanto envergam uma camisola como logo a seguir vestem a camisola da equipa rival. Os adeptos são fieis – em alguns casos, nos mais doentios casos, dir-se-ia de uma fidelidade canina. (Anteontem descia a Avenida da Boavista e dei de caras com uma folclórica personagem que é tão doentiamente adepta do seu clube, que traja sempre roupas com motivos axadrezados.) Tribalizam-se, os adeptos. Nem merece um segundo que seja essa figura sinistra que é o jovem adepto de claque organizada. Só contam os adeptos comuns, os que compram lugar de bancada para todo o ano, têm profissão respeitável e ficam cegos quando a sua equipa joga.
É uma burguesia bem instalada em demanda da descompressão das exigências do complexo mundo lá fora. Enquanto peões do mundo contemporâneo, em achando-se de si mesmos figuras bem pensantes que corporizam o “código de valores” dominante, renegam o que a alienação clubística neles semeia. Alguns são até cultos. Quando põem ao pescoço o cachecol da equipa e entram no estádio, transfiguram-se. Só conta ganhar. Seja de que forma for. Só há vitórias e derrotas na história e na estatística dos desportos. Os detalhes de um jogo – os insultos aos adversários mais à sua família, os truques que enganam o árbitro, as pernas partidas aos adversários, tudo o que for preciso para sair vitorioso do jogo – tudo não passa de irrelevantes notas de rodapé que não ganham lugar na posteridade.
O desporto é um microcosmos. O lugar onde se não disfarçam os abismos entre as nobres intenções proclamadas e o que se faz. A avidez dos triunfos sobrepõe-se. Dizem sim à lealdade desportiva, mas só até a certo ponto. Àquele ponto de rebuçado em que o mais elevado propósito da vitória pode ficar hipotecado. Nessa altura, na reordenação das prioridades, às malvas o fair play que o imperativo do triunfo grita com os pulmões bem abertos. O desporto não é desporto: é uma guerra onde se usam todas as armas que sejam necessárias para chegar ao triunfo. O desporto, como o fair play, é uma treta.
(Texto talvez inspirado pelo endeusamento do Mourinho por ocasião de mais um estrepitoso triunfo.)

21.5.10

Galinhas poedeiras


In http://veiculonet.com.br/avicultura/wp-content/uploads/2010/01/aviariogaiolas.jpg
Criaturas fadadas para parir. As benfeitoras da espécie. À função parideira resume-se um projecto de vida. Quando duas se cruzam o assunto está garantido: a descendência, só a descendência. Feitios e manias, feitos e glórias que sempre, sempre, sublinham génios em potência. Roupagens a preceito e as lojas, ora da moda, ora as que enchem as montras com pechinchas (que estamos em crise e até a prole tem que ser remediada).
Às vezes esbarro em galinhas poedeiras. É imenso o deleite com sua a generosidade humanitária, com a excitação do intercâmbio das experiências maternais. Quase misantropo, aprendo muito com as galinhas poedeiras que se atravessam à minha frente duas vezes por semana. Não embandeirassem na árdua tarefa da procriação em série e as maleitas demográficas teriam outra gravidade. Mas a leviandade que perpassa nas conversas não deixa muito espaço para grandes considerações ontológicas por dentro daquelas cabeças. Pressinto egoísmo macerado nas pessoais garrafinhas onde tilintam os ponteiros do febril relógio biológico.
As galinhas poedeiras nasceram para a função. Há quem se entregue à castidade do sacerdócio. Outras aprestam-se aos prolegómenos da procriação como meio para um fim, a satisfação do relógio biológico alojado na parte conveniente do cérebro. A sua conversação percorre sempre a poedeira função e as exigentes responsabilidades de ser mãe. Ou tenho azar na convivência, ou não as imagino com outro assunto a alinhavar a alcoviteirice. Se calhar tiro (estas) conclusões precipitadas: aquelas mulheres têm na maternidade o seu pessoal sacerdócio; tudo sucumbe diante das exigências da maternidade, como se mais nada interessasse. Do que oiço, tornaram-se desinteressantes.
Há ideias trocadas entre elas que arrepiam. A descendência vem antes de tudo. Até delas. A sua existência passa a ter sentido em função dos rebentos que brotam com a sua maternal condescendência. Satelizam-se: elas, as luas que gravitam em torno dos centrípetos descendentes. É como se desapossassem da sua individualidade e tudo, mas tudo, girasse à volta das crianças. Podem lá tão frágeis criaturas ser empenhadas aos sortilégios? Às galinhas poedeiras cabe abraçar a prole debaixo da asa protectora, repelir as numerosas ameaças do habitat selvagem. Garantem, as galinhas poedeiras, que os diabos lá fora não tiram o sono justo quando as crias se resguardam no largo regaço maternal.
As duas galinhas poedeiras à minha frente, o arquétipo da mãe galinha. Um suspiro decantado, uma indisposição de humor, um resmungo sem razão – tudo as leva à apoplexia, o coração a cento e oitenta batimentos. De tanto asfixiarem o crescimento das crianças, educam-nas na pior das impreparações para o absurdo, feroz mundo lá fora. E eu pergunto-me: o que será destas aves poedeiras quando os rebentos almejarem a alforria? Aprenderam a calibrar as coordenadas da existência? A bebedeira biológica não as traz ao limiar da crise existencial? Nessa altura, as células já envelhecidas não autorizam a repetição poedeira.
Pelo caminho, ensimesmaram-se tanto na descendência que esqueceram o resto, todo um imenso mundo em redor. A faca cortante de um contra-senso: por acharem que se realizavam na função maternal, despiram-se da individualidade. Tornaram-se pálidas figuras do que foram outrora, carcomidas pelo relento das noites em desassossego, pelas enxaquecas extemporâneas ao mínimo ai do menino e da menina, sobressaltadas pelas dores de crescimento da prole – como se a prole não tivesse que crescer e dores para suportar.
Uma vez, houve uma que disse isto: “temos que os aproveitar agora, que quando forem crescidos deixam de ser nossos”. Devo andar enganado pelas almofadas da paternidade. “Aproveitar agora”? Como se tira partido de uma guloseima? E “deixam de ser nossos” quando se meterem a caminho da alforria? Eis o mal maior da espécie: quando afectos e posse se confundem num só. As galinhas poedeiras, imersas num lamento daqueles, bebem a cicuta de um tremendo equívoco. O da lente que ensina a maternidade (aos seus olhos).

20.5.10

A serventia de uma unha proeminente no dedo mindinho


In http://4.bp.blogspot.com/_L03WvBwL6OI/SjkCkcDHWHI/AAAAAAAAAV0/kvun65ouG-M/s400/367121966_97846a6d69.jpg
Eu julgava que já pouco se intrometia entre o conhecimento e a sua ausência. Julgava que há sinais tão claros que as conclusões se oferecem com a nitidez de um céu claro soprado por uma nortada fresca. De vez em quando irrompe um palco inesperado, um actor sibilinamente mostrando a negação das impossibilidades.
Às vezes via homens passeando a assimetria do tamanho das unhas dos dedos, a do dedo mindinho sobrepujando as unhas dos outros dedos. É voz corrente que estes boçais conservam aquela unha avantajada porque é o dedo mais fino, o dedo mais a jeito para a limpeza do pavilhão auricular. É voz corrente; a honestidade não me deixa dizer que já vi estes exemplares da boçalidade lusitana a meio da função higiénica, abjurando a matéria cerosa que nasce onde o pavilhão auricular mergulha na escuridão. E não sei se será coincidência: pelas andanças por terras diferentes nunca vi ninguém a cultivar o agigantamento estratégico daquela unha.
Almoçava em Mangualde. Na mesa à frente, um casal e a adolescente filha. Enquanto amesendava umas entradas, acompanhei o ocaso do almoço da família. O homem que trajava camisa aos quadrados brancos e laranja, por cima de uma t-shirt laranja que tão bem casava com a cor da camisa, debatia-se com sobras alimentares encavalitadas entre as protuberâncias dentárias. Com alguma descontracção entaramelada com discreto pudor, deu corda ao dedo mindinho da mão esquerda. A mão direita – o sinal do pudor discreto – era um biombo à frente da boca enquanto decorria o polimento dentário. Os abismos entre e no meio dos dentes tinham que se libertar das adjacências do almoço. Da maneira como exercitava o dedo, com uma destreza impressionante, diria que aquela boca já não visitava dentista há uns anos largos.
Da primeira vez que esbarrei na perícia, desviei o olhar. Era como se tivesse pudor pelo homem. Mas naquele dia estava meio sociólogo, meio antropólogo. Quem, entre os observadores da espécie e os anotadores de comportamentos, se podia gabar de dar de caras com um espécime dando uso insólito à idiossincrática “unhaca” do mindinho? Encarnei personagem sem pudor com a falta de pudor do homem. Como se fosse um cientista no meio da selva a ter o privilégio de testemunhar raro fenómeno da natureza. Fixei o olhar enquanto a unha maior do dedo menor basculava a cavidade dentária de um lado para o outro, com insistência de conhecedor. O homem reparou na minha indiscrição. Eu jurava que não estava em pose moralista. Quis evitar um sorriso cínico: meti a cara de pau número cinco, a pose eanista. O homem ficou incomodado. Terá percebido que a limpeza de salão bocal era – como dizê-lo sem corar? – inapropriada?
O meu olhar insistente terminara a exibição de higiene dentária em plena mesa. Fiquei arrependido do intrépido sobressalto da curiosidade. Não pude aprender mais detalhes da especialidade com o catedrático da função. Não que estivesse carenciado, que tenho – como diria o grande Cesariny – “lavados e muitos dentes brancos à mostra”. O desassombro que incomodara o engenheiro das obturações dedais fora meu desengano. Só tive direito a uma pequena amostra do irrepreensível escovilhar dos dejectos do bacalhau assado que se intrometiam entre dois dentes onde faltava a ponte natural.
Estabeleça-se para a posteridade do conhecimento que a unhaca que cresce com desvelo é multifuncional. Serventia auricular e bocal. Enquanto metia uma garfada de espadarte grelhado à boca, interroguei-me se a unha sobresselente não tem outras serventias, digamos, à guisa de choque para as convenções. É que ao virar da esquina estão todos os insólitos só à espera que retiremos o empoeirado oleado que os cobre.

19.5.10

Dropes de filosofia



In http://dinheiroereciclagem.com/wp-content/uploads/2009/04/rebucados-sem-embrulho.jpg
Há sempre uma espectacularidade prometida na pompa dos anúncios. O que se anunciava anteontem na Fundação de Serralves era a presença de um dos (disse-o o organizador da palestra) “vinte e cinco pensadores mais influentes da contemporaneidade”: Daniel Innerarity. Vinha falar sobre o futuro – o que, para quem anda por dentro da ciência e desconhece a obra do filósofo, causava alguma urticária intelectual.
Innerarity começou por glosar Teixeira de Pascoaes: “saudades do futuro”. Estava encantado com a frase do poeta amarantino. Mais tarde, citando Einstein (“nunca saí do futuro”), convidou a audiência a considerar o cientista e o poeta gémeos intelectuais. Devemos cuidar do futuro porque os dias vindouros perdem-se na alucinada fobia do presente. Trazemos do passado as irrelevâncias que enxameiam o presente. Quem apoucar o futuro não honra o tempo presente em que vive. No seu diagnóstico pessimista, a nossa patologia é vivermos empenhados ao presente. Como se o tempo se esgotasse no dia que finda. Para Innerarity, a doença teria osmose num sintoma de outra doença maior, fatal: “expropriamos o futuro dos outros”, advertiu. Os “outros” desta fórmula são os que pertencem ao amanhã. “Nós”, os de agora, possuídos por uma egoísta ausência de lucidez do tempo vindouro.
O filósofo tempera o pessimismo da análise com a terapêutica necessária: impõe-se a “colectivização do tempo futuro”. Primeiro, através da redefinição das prioridades temporais da agenda política, que se deve orientar para o longo prazo. Segundo, inventariando o conceito de “responsabilidade futura”. Oxalá que o pouco tempo em que encamisou a sua comunicação (foi passando à frente várias folhas onde tinha o esboço da palestra) tivesse permitido elaborar a ideia. Sobretudo as consequências da “responsabilidade futura”: os irresponsáveis perante o futuro teriam que sofrer sanções (e duras, adivinho daqui) para tornar eficaz a “responsabilidade futura”. Senão, era só um conceito desprovido de conteúdo. Terceiro, desafiou as universidades e os centros de investigação a apostarem na investigação prospectiva. Um desafio por dentro do desafio: seria imperativo repensar os cânones da investigação científica, rever o tabu da especulação com o futuro.
Fui às escuras para a palestra, por desconhecimento da obra de Innerarity. Talvez tenha sido melhor assim. O ponto de partida não coincidia com ideias preconcebidas sobre o filósofo. Não confirmei o que se anunciava com tanta pompa na apresentação encomiástica de Innerarity. Talvez tenha sido inovadora a forma como foram expostas ideias que já me eram conhecidas. Innerarity atirou-se furiosamente contra a navegação errante dos governos, com a sua indisponibilidade (que é pior do que considerar incapacidade) para lidarem com o futuro – com as consequências projectadas para o futuro das decisões que tomam hoje. Usou fórmulas elegantes e criativas, como descobrir nesta patologia moderna uma “coligação dos vivos contra o futuro dos de amanhã”.
Não venho em defesa dos economistas (de alguns economistas), que é ciência que faz uma travessia no deserto recolhendo as sobras da crise onde a sua credibilidade científica foi despojada. Propostas feitas por economistas eram a filosofia de Innerarity antes de se tornar a filosofia de Innerarity. O que o filósofo basco propôs em abono da sua filosofia de honra ao futuro foi a sanidade das contas públicas que alguns economistas trazem na algibeira há muito tempo. E Innerarity, terá lido aqueles economistas?
A palestra foi interessante, contudo. Mas ficou aquém da promessa de quimeras intelectuais feita na apresentação do orador. Afinal, os economistas (alguns economistas – a ênfase não é inocente) já tinham descoberto a filosofia de Innerarity antes de Innerarity. Ironia do destino, o economista da moda (Krugman, Nobel do ano passado), que andou ajuramentado à antítese da filosofia de Innerarity, deve, por estes dias, ter metido a viola no saco. A homenagem ao futuro leva a meter Keynes nas catacumbas outra vez. Se aprendemos algo com Innerarity, o filósofo da moda, é que, ao contrário de Keynes, “no longo prazo (não) estamos todos mortos”.

18.5.10

Cortinas


In http://www.furnishingsstudio.com/images/curtains2.jpg
Há casas que não têm cortinas às janelas. São janelas abertas para todo o exterior, um convite aos olhos indiscretos. À noite, as luzes que iluminam as casas amplificam a esquadria dos compartimentos. Os móveis à mostra, os atoalhados em cima da mesa, as plantas que se acolhem no interior de uma casa. Só com um pouco de esforço e até se entra nas preferências da programação televisiva, ou nas preferências de leitura a atestar pelos livros e revistas espalhados em cima da mesa. Sem cortinas, é como se o filtro da individualidade se pulverizasse em mil pedaços.
As pessoas que transitam na ausência de cortinas, despidas de pudores? Saberão que os passos, os gestos, as leituras, a estética amontoada no mobiliário, tudo isto e o que mais se imaginar é espiolhado pela curiosidade alheia que mete sabem lá quantos pares de olhos dentro das casas desprotegidas?
Estes dias são uma voragem de contraditórios. Alguns, movidos pela reserva de intimidade, incomodam-se só de desconfiarem que uns fautores da curiosidade alheia espreitam a sua vida. Outros encavalitam-se no oposto. Trazem a vida íntima para fora de si. Não faz sentido a reserva de intimidade. A intimidade já não tem o mesmo significado de outrora. Vão aos dicionários e montem outro significado – ou destruam a palavra. Assim como assim, estes zénites do modernismo são os primeiros voyeurs da intimidade dos outros. Não custa a entender que desvendem de par em par as janelas desprovidas de cortinas. As janelas por onde se espreitam as vidas dos outros. As janelas onde todos os que fazem parte dos outros desejados partilham, em aceno generoso, a respectiva intimidade.
Dir-se-ia que a chacina das cortinas é como uma anónima nacionalização da privacidade. Fará parte da religião da moda – o endeusamento do “colectivo”, com todos os indivíduos levados a humildemente sucumbirem diante da colectividade. Não deve haver segredos guardados. Ousam estes sacerdotes afiançar que só quem algo deve é que teme mostrar o que acha pertencer à privacidade. Teimar na toleima das cortinas é nadar contra a sadia corrente dominante. Não sei se será de propor a um socialista qualquer o próximo acto de engenharia social: proibir as cortinas nas janelas das casas. E decretar que as pessoas só podem descer persianas quando estiverem encomendadas ao sono.
As vidas privadas seriam um imenso lago de águas cristalinas. Eram só vantagens idealizadas no estirador do pensamento de um qualquer pródigo engenheiro social. Deixaria de se falar em “podres”, em “rabos de palha”. Seríamos todos uns líquenes com tufos transparentes, uma luminescente exalação da mais pura das transparências. Por fim, o triunfo de uma moralidade sem mácula. Os valores, contudo, esbarram no ensimesmar dos atávicos egoístas. A estes, a única salvação possível: a reeducação. Pode a formatação do pensamento tropeçar em recifes; venha então o admirável decreto a passar por cima dos teimosos tomados pelo novo pecado maior, a transgressão do individualismo. Esse infecto individualismo que os torna bebedores da cicuta do recato da intimidade.
Eu quero as cortinas mais opacas que existam. Nem que as tivesse que comprar no mercado negro. Tão opacas que nem um vestígio de luz haveria de atalaiar o exterior. As minhas janelas, quero-as calafetadas contra os promitentes da coscuvilhice. Não quero que das janelas exale qualquer transparência interior. Não vou ao ponto de ser tomado pelo pânico só de saber que um doente qualquer espreita na minha vida, que as patologias alheias não consigo (nem quero) dominar. Há um reduto insuperável: há sempre um pedaço de individualidade que pertence a cada um.  
(Nisto, esbarrei num pensamento agoniante: e os textos que me trazem para fora de mim, não são uma espécie de gigantesca janela desprovida de cortinas?)

17.5.10

A definição de pesadelo



Via 5dias

O sexo é tramado!



Serão as sobras do papa, ou apenas a irremediável tacanhez das cabeças mais atreitas ao conservadorismo de costumes. O escândalo numa sossegada freguesia de Mirandela: uma professorinha toda jeitosa despiu-se quase toda para uma revista que costuma mostrar curvilíneas meninas todas desnudadas. A provar o que se diz daquela terra transmontana (que é a “terra quente”), o amalucado acto da senhora professora foi descoberto às duas por três. E não é que a edição da revista também foi parar a Torre de D. Chama?
A terriola ficou em estado de sítio. As mães (lembram-se das mães de Bragança? Devem ser primas destas) todas num desassossego como se um cataclismo se tivesse abatido naquelas terras. E as tias e as primas e as possíveis moças casadoiras dos matulões que lamberam os beiços só de saberem que podiam ver a professorinha em trajes menores. O assunto chegou à câmara municipal de Mirandela – o patrão da professora. Nem pestanejaram, os autarcas responsáveis. Suspensão imediata para a doidivanas da professora, e que espere sentada pela renovação do contrato. Que vá ensinar as “actividades extracurriculares” (ó ironia do destino, era o que a jeitosa ensinava...) para outras paragens.
A confirmação que faltava: terão sido dissolvidas as fronteiras entre a vida privada e a vida pública. A professora cometeu o pecado fatal de despir as roupas e ainda recebeu dinheiro por cima. Ó infâmia, só de pensar que os alunos nunca mais conseguiriam ver a professora como a viam antes de terem sabido que ela era dada às artes do striptease em revistas eróticas. Numa terra de imperativos categóricos, todos sabemos no que isto ia dar. Alunos desconcentrados, imersos em fantasias lúbricas com a docente; as alunas a roerem as unhas de inveja, sabedoras que os moços desviavam a atenção das lides namoradeiras para os dotes lascivos da professora. E muitas famílias inquietas pela promiscuidade latente. Mulher que se despe para todos não é mulher confiável. Como pode uma rameira ser professora dos meninos e das meninas?
Quase ao mesmo tempo – talvez ainda com inspiração papal – o patusco personagem que se auto-intitula “pretendente ao trono” vociferou contra a educação sexual nas escolas. Teve este desabafo pouco condizente com os pergaminhos: “é como dizer aos alunos: forniquem à vontade”. Ele há gente que tem o condão de me levar ao lado contrário do que defendo. Já aqui escrevi que era contra a ideia obtusa de ensinar sexualidade nas escolas. Não pelos preconceitos de “sua alteza” putativa, mas por desconfiar da sageza dos ensinadores da função. Ao escutar a calinada do “pretendente ao trono”, esqueci-me que era contra a educação sexual nas escolas.
Farto-me de rir com esta gente que vive embaraçada com o sexo. Que aborrecimento a natureza humana, as hormonas ali todas aos saltos num frémito só, o desejo de copularem uns com os outros a desatar a cólera dos moralistas. Eu, que ateimo na radical faceta liberal e que não vejo que dos filmes pornográficos venha mal ao mundo, pergunto aos moralistas de vão de escada se preferem que as criancinhas saibam da poda através de tal género cinematográfico. E pergunto isto porque tenho a impressão que estes beatos sem sotaina, pudessem eles ter a vareta das proibições na mão, proibiam filmes pornográficos. Tudo isto vem com uma advertência: esta interrogação não me transforma num adepto da educação sexual nas escolas.
E depois há a questão da linguagem, da indecência da linguagem. Um “pretendente ao trono” não pode beliscar os impecáveis pergaminhos. “Fornicar” é palavra feia, o sinónimo civilizado do vernáculo de taberna que também começa pela mesma letra do alfabeto. A última vez que alguém me pronunciou essa palavra medonha foi um pastor Jeová que tocara à campainha prometendo a minha redenção se não me desencaminhasse pelos antros da “fornicação”. Prefiro a perdição dos demónios que me estão prometidos. E um lamento: no meu tempo, não havia professoras ousadas...

14.5.10

This Mortal Coil, "Another Day"

Outro dia


In http://correrporprazer.files.wordpress.com/2008/08/calendario.jpg
A pior das demissões – dizem-to de dedo espetado à frente dos olhos – é ficar à espera do outro dia. Os dias que são outros, idos ou ansiosamente esperados, apenas a negação que dá espessura à existência. A incorrigível anemia do ser escorrega para a desesperança de outrora, ou para um qualquer messianismo que milagre algum haverá de trazer. Teimas: os dias que contam são os outros, os que já escaparam como areia fina entre os dedos, ou os que se prometem com a vastidão do vento que nem as mãos mais grossas conseguem capturar.
À espera do outro dia, renegas-te. Não aprendes que não é no outro lado do dia, no dia ausente, que cresce a sofreguidão pela existência. O dia outro por que esperas embebido numa doentia inércia é um taciturno passeio pelas porosas praias onde nem o mar avistas. Pé ante pé, traças o rasto nas areias molhadas pelo mar imaginado. Tudo é imaginado. O dia ausente, o dia que se esboça no outro dia que ora já aconteceu, ora se prometeu num impreciso porvir. Até o teu rasto nas areias molhadas é imaginado. É a tua vez de tomar a palavra: não te renegas, reinventas-te.
Como é possível que as areias sejam aquela cama emparedada, humedecida, se no fio do horizonte não lobrigas maré alguma? Como é possível que os passos arabescados no areal se façam em nada se não vês a espuma do mar sobrante a beijar os pés da areia? Insistem contigo: o outro dia é uma prisão mental. Vives acorrentado ao outro dia por que esperas e não és capaz de acordar da letargia que te consome. Enquanto estiveres acorrentado ao outro dia, o que há em ti é apenas simulacro.
Deixas-te imerso no fantástico mundo onde se apinham amanhãs prometidos em sonhos a meias com uns lampejos coloridos, propositadamente amplificados, dos convenientes retratos resgatados aos dias de outrora. Lá, nessa imensidão que é um universo mil vezes maior, os olhos marejam-se de cada vez que as afeições imaginadas percorrem as vértebras e se desfazem em arrepio comovente. Ao menos sentes, algo. Ao menos, nas masmorras interiores do teu refúgio, lá onde nidificam todos os dias que são outros, consegues sentir. Extrais-te à anestesia que só o é para os demais.
Queres lá saber que andes em passos errantes, a bússola desafinada, os sapatos trocados, vestindo agasalhos quentes em dias de Verão, ou a dormir ao relento num dia soalheiro quando passaste a toda noite acordado na lassidão das quatro frias paredes do quarto? Que interessa que tenhas sido empossado aberração? Os outros que de ti fazem imagem qualquer (mas sempre na antítese meritória), são como os outros dias que dizem não terem merecimento algum.
Tens a consciência das dores insuportáveis dos dias que quadram com o presente. Quem se empenha num sofrimento inútil? Depões-te aos pés dos outros dias que ainda ninguém conhece. Pode ser um adiamento das cinzas maceradas que os dias conhecidos espalham. Não deixas o bumerangue tocar no solo; levitas, farejas a trajectória traiçoeira do bumerangue. Segues nisto, dias a fio, como se não houvesse sono para dormir (a não ser o muito sono onde se acastelam os sonhos que avivam a litania em que te demoras); segues nisto, só para o artefacto voar, voar sempre. E nunca pousar, em matéria inerte, no chão. Só para não esbarrares nos dias acordados e te condoeres no compungido penar por que arrastas os ossos do corpo.
São tuas as costas que se deitam ao entorpecimento dos dias que pertencem ao calendário ausente. O mais que querias, é que te deixassem entregue aos dias que te apetecem. 

13.5.10

Piadas de mau gosto (II)

Consequências do pecado da gula: “ficou impotente após 34 horas de erecção”.

Pai natal coxo


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Não que a personagem ande manca ou com artroses que tolham o andar. É a crise que deixa o seu restolho nos vestígios que não cessam. Atrás da crise vem a austeridade. É quando a ferida dói, como se, ainda aberta e purulenta, lhe atirássemos sal para cima. Por todo o lado sopram os ventos catastróficos dos cortes nisto e naquilo e noutras coisas que se possam imaginar. O enxoval das medidas que, por ora, ainda se especulam é abundante. Entre elas, um subsídio de natal emagrecido.
De repente, temos que refazer os planos para o natal que ainda demora. Um pai natal menos generoso, por imperativos de solidariedade. As prendas e prendinhas podem esperar. Ou podem ser mais frugais. A santa igreja católica e o seus aliados que não se cansam de atribuir todos os males do mundo ao mal-afortunado capitalismo bendizem a crise e a austeridade que se segue. Ao menos, vamos ser obrigados a pôr um ferrolho no alucinante consumismo. Os comerciantes, esses, com um apertado nó na garganta só de pensarem que as bolsas vão perder “liquidez” (para falar em economês).
Não há grande mal que não tenha remédio – rezam os optimistas encartados. Temos que dar uma volta de cento e oitenta graus aos padecimentos que são consumição. Entremos, pois, na pedagogia da austeridade que é imposta pelos outros (os da União Europeia), pois os de cá, relapsos e medrosos, eram disso incapazes. A sangria de proventos que há-de cá chegar não será catastrófica. Ontem, o governo do lado de lá da fronteira decidiu cortar 5% nos salários dos funcionários públicos. Preparemo-nos. Temos que reaprender a viver. Com menos. É nos desafios que se salienta a têmpera dos venturosos.
Já nos podemos ir preparando para um natal modesto. Prevejo (mas sem oráculo) que o pai natal vá de férias mais cedo. O barbudo Nicolau não vai chegar extenuado ao cabo das festividades natalícias. Menos arqueado sobre as cansadas costas, já que os embrulhos mais leves são fardo menos pesado de suportar, não resistirá a um suspiro de nostalgia.
Se eu fosse uma daquelas personagens muito folclóricas que descobrem elos de ligação entre as coisas mais improváveis, apetecia-me outro presságio: a crer nos geólogos islandeses, o vulcão de nome impronunciável vai continuar a vomitar lava e cinzas por tempo indeterminado. Por alturas do natal, quando os ventos sopram do Árctico e vêm por aí a baixo, abraçando todo o continente europeu ao frio glaciar, o espaço aéreo há-de estar intransitável. Se calhar, nem vamos precisar de subsídio de natal. À míngua de pai natal, retido na base operacional da Lapónia de onde não avistará os céus claros, então obscurecidos pela densa nuvem de cinzas vulcânicas, o melhor é nem recebermos o décimo terceiro mês. Os gurus que se atiram que nem mastins à doença do consumismo louvam aos céus que estes permaneçam empestados pela nuvem vulcânica.
Íamos pela mais fantasiosa das conspirações. Deus (existisse ele) tinha um pacto com a ganga que se atira furiosamente ao capitalismo e às empresas e aos enfeitiçados pela excrescência do consumismo. Moço de recados dos mastins do costume, deus encomendara demorada expelição de lava e cinzas do vulcão de nome que não se consegue dizer. Só para termos um natal recatado, dir-se-ia, um natal monástico. O pai natal, afinal, metera sabática forçada.
Pelo caminho, os governos, açoitados pela crise e pela austeridade que se segue, viam-se livres dos trabalhos desagradáveis. Até nos podiam convencer que o natal tinha sido desconvocado. Sem natal, não precisaríamos do subsídio respectivo. E depressa a bonança estaria de regresso às economias deprimidas. Às escondidas, governos, santa igreja e ganga anticapitalista reunidos em conciliábulo onde entoam preces ao vulcão islandês. O coxo pai natal pode-se curar da perna gangrenada.