22.4.10

O capitão da espada desembainhada


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Errava pelas ruas, fatiota aprumada do mais alto tenente mareante. Olhares altivos a quem passava convocavam ao respeito pela patente. Os passeantes, ignaros ou alienados, devotavam a irrelevância dos mortais ao capitão de mar e terra. Podia ser que o fosse, mas apenas quando a maresia se apoderava da paisagem em volta, o único farol visível na imensidão do oceano sulcado pelo navio.
O capitão compunha pestanas iradas. Nem a farda aprumada, a farda folclórica, ou o obtuso chapéu, eram chamamento para os transeuntes. À cintura, a espada revolvia-se, suplicava para ser desembainhada. Podia ser que o respeito aterrasse no lugar onde era reclamado. Então talvez todos olhassem para o garboso capitão, as unhas esmaltadas cravadas na base da espada, a pose ameaçadora. Seria tomado por demente; ninguém acreditaria na patente. O ar tresloucado com a espada dúctil era a aterradora circunstância de quem a estivesse testemunhar.
Andaria pelas ruas – imaginava o capitão desdenhado –, a ponta afiada da espada em piruetas que desenhavam as suas próprias circunferências no ar. Como se deixasse um rasto com as gritadas palavras de protesto na ponta da espada a sulcarem a transparência do ar. Lívidas, as pessoas à sua passagem. Ninguém esboçaria um insano, heróico acto de detenção do capitão embebido na sua interior fúria. Continuaria a ser tomado por demente. Nem o impecável fardamento onde reluziam medalhas de bravura em batalhas idas era convencimento da sua lucidez. Talvez as pessoas julgassem que o louco se escapara do hospício e, por um insondável mistério, se apoderara do fardamento militar. Outros, imersos numa teoria arrevesada enquanto se debatiam com o pânico, julgariam que a ensandecida personagem alugara fatiota carnavalesca e se enganara no calendário.
Só o capitão sabia que não estava à beira da demência. Os deuses que o acompanham estariam ausentes, a falta de lucidez a esbracejar onde só se conhecera sensatez. Por um instante de loucura, uma vida inteira quase a ser espoliada. Desatara a destruir a vegetação do jardim. Degolara um cisne que deslizava entre os nenúfares. Gritara, com uma voz cavernosa, uns bramidos ininteligíveis. Temerosas, duas velhinhas correram para longe, também elas soltando gritos estridentes de pavor. O capitão, em pose marcial, balançava a espada de um lado para o outro, levantando um silvo com o metal cortante a despedaçar o ar que se atravessava.
Não tinha guarnição para obedecer. Nos longínquos mares por onde o navio se demorava semanas a fio, só existia uma temerária, obediente tripulação. O capitão já não se lembrava o que era ir a terra. Quando o navio aportava, exilava-se no convés fazendo companhia a uma garrafa de brandy. Estava desabituado a ser um comum mortal. Uma pulsão suicida apoderou-se. Era a falta da veneração a que estava acostumado. A gentalha haveria de descobrir, nem que fosse pelos piores modos, que uma farda é uma farda porque merece respeito. São poucos os habilitados a trajar farda e a empunhar a ancestral espada, o catalisador da autoridade dos predestinados. Era impensável que a gentalha fosse insensível. Que se tornasse sensível pelos argumentos da força.
Continuava o caminho errante, afogueado, possuído pela visceral fúria que decantava pelas ruas da cidade – pelas ruas já desertas. O palco esvaziado. Olhou para todos os lados. Espreitou em esquinas só para saber se alguém, em temerária desconfiança, não espreitava os seus endemoninhados passos. Não havia vivalma. Prosseguiu ao acaso. Três passos à frente estava o cais, o retemperador mar por diante. Recolheu a espada e compôs os cabelos que se desgrenharam com o destempero. Subiu a escadaria do navio, onde estavam os subordinados de serviço a retorquir com a continência imperativa.
No dia seguinte, ao acordar, os lençóis eram um espremedor do seu suor. Inerte, com as costas amparadas na base da cama, a interrogar-se onde estaria a realidade.

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