3.3.10

Decair aos pensamentos


Diriam que havia sobranceria se dissesse que não consigo resistir aos meus pensamentos. Mas só se houvesse equívoco no sentido das palavras. À primeira vista, podem conter um laivo de vaidade – como quem dissesse que são tão irresistíveis os pensamentos que habitam no interior que deles se exalta uma superioridade reconhecida. Não era disso que se tratava. Ao dizer "não consigo resistir aos meus pensamentos", queria denunciá-los na sua tirânica expansão.

Arremetiam, caóticos e desorganizados, ou obedientes a um plano, como se neles houvesse índice. Insinuavam-se nos interstícios do quase nada. Às vezes, um olhar distraído esbarrava numa perturbante imagem que logo incendiava pensamentos que depressa tomavam conta do resto. Uma pedra no chão, desalinhada; uma vírgula mal colocada; um revés que diriam cósmico; uma existência lograda – tudo pretextos para que o pensamento cavalgasse do nada e engrossasse uma tímida gota de água até se transformar numa lava incandescente e sem interrupção visível.

Era muito o tempo gasto entre os labirintos dos pensamentos lodosos. Fruíam, as perguntas, em compasso com o pensamento rebelde. As muitas perguntas. Contra as interrogações, ausentavam-se as respostas. E quando uma resposta irrompia entre a luz baça que tingia os pensamentos, eles, tirânicos, abriam caminho a perguntas que ainda não tinham sido elaboradas. Neste círculo vicioso, só não havia lugar a respostas. Temiam-se, as respostas. Ou era o pensamento, algoz das coisas definitivas por temor da sua própria asfixia, o régulo das respostas que só conseguiam espreitar antes de serem ocultadas.

Em instantes de desprendimento da espada sangrenta do pensamento, julgava que era excessiva a vida desperdiçada nos passos trocados do pensamento estéril. Diziam-lhe: nenhum pensamento é estéril. Não pode o excesso ser castrado quando por toda a parte vinga a carência de pensamento. Nem assim resistia à sensação de aridez quando via os dias correram contra o tempo e todo esse tempo ser gasto nos pensamentos. "Estéreis" – repetia, sem cessar, quando a agnosia se libertava das masmorras do pensamento. Os pensamentos não eram circulares. Eram um contínuo, uma linha interminável sempre com ramificações. A certa altura, já percorrera uma distância de muitas milhas entre o motivo que dera origem a um pensamento e o lugar a que o pensamento aportara.

Imerso em contradições. Umas vezes, dava conta da flagrante incoerência. Ao início, angustiava. Não percebia como o pensamento tão ágil se encerrava nas suas próprias contradições. Um filósofo desvendara o segredo: é isso o pensamento, a capacidade para descobrir que o que fora ontem pensado pode ser amanhã desmentido, ou pelo menos reconstruído. Outras vezes, a armadilha das incongruências não era discernível. A não ser pelos outros, que de fora viam melhor a nitidez de um pensamento que, dissecado desde as entranhas, esvanecia-se na sua opacidade.

Este era o palco quando dizia "não consigo resistir aos meus pensamentos". E já nem se importava com o desdém em volta, na maior parte das vezes os ouvintes reprovando a frase como exibicionismo de uma putativa superioridade. Não era isso que queria representar. Mas recusava ser intérprete das próprias palavras nos meandros mentais dos outros. As imerecidas intenções firmadas através da lente distorcida dos outros eram moléstia que só lhes dizia respeito. A eles a sua própria entropia.

Sobravam os despojos do próprio pensamento. Era como se todos os dias houvesse furiosas tempestades, daquelas que espalham a devastação por todo o lado, com árvores caídas, gente desalojada, gente dilacerada, rios fora das encamisadas margens, um interminável rasto do vendaval que se montara, espontâneo, indomável. Todos os dias havia uma tremenda tempestade cerebral. O dia seguinte não era para limpar os destroços. O dia seguinte era outro combate interior contra a tormenta que emprestava a cor ocre e as sombras plúmbeas à existência.

Era como se não houvesse dia seguinte.

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