1.2.10

O valor incalculável das ruínas



Há inúmeras explicações para as ruínas que, muitos anos depois, quando são descobertas por arqueólogos, merecem pousio num museu. Podem ter sido guerras devastadoras que não deixaram pedras intactas. Ou o desleixo de quem converteu lugares em ruínas. Ou a erosão do tempo a acompanhar o desinteresse de quem habitava nos lugares arruinados. Ou a confirmação de que as eras que se sucedem experimentam a espécie humana, conferem-lhe densidade.

Num museu em Sofia, passei os olhos por fragmentos de pedras ornamentadas, moedas finas e desgastadas pelo muito tempo que estiveram em hibernação debaixo de terra, papiros fundacionais de qualquer coisa, anéis cravejados com corpulentas pedras preciosas que coroavam os suseranos. Gostava de ter percebido o contexto: o quando e o porquê do valor incalculável das peças catalogadas e protegidas por vitrinas à prova de bala e do simples tocar dos dedos de gente mais curiosa. Como não aprendi o alfabeto cirílico na escola, só pude olhar para aqueles fragmentos da história, de uma história qualquer digna de registo, sem ter acesso às explicações que ladeavam a exposição.

(Havia uma barreira detrás de outra barreira. Por desconhecimento do alfabeto, nem sequer se colocava o obstáculo da língua na forma escrita. Haveria de tropeçar no obstáculo quando procurei um restaurante para jantar. Escolha por exclusão de partes: os que só tinham ementas em alfabeto cirílico fizeram a exclusão de si mesmos. Tirando aqueles lugares tomados pela onda de ocidentalização, com empresas multinacionais a frequentarem o mercado local, o cirílico era a maré dominante. Talvez Sofia não seja uma cidade que receba tantos turistas que justifique o desdobramento de informação nos dois alfabetos. Em algumas ruas – as principais – nota-se esse esforço, o que é útil para quem lê um mapa enquanto descobre a cidade. No metro, por exemplo, só havia informação em cirílico.)

Ao lado dos vestígios expostos, fotografias elucidavam os visitantes. A linguagem universal das imagens, sobretudo quando elas falam por todas as palavras, ultrapassava a barreira do alfabeto cirílico. Percebia-se que havia devastação nos locais que não deixaram senão uns vestígios para os tempos vindouros. De um lado, fotografias de igrejas, mercados, aglomerados de casario – fotografias das pedras que sobravam no despojamento da destruição. Ao lado, um desenho que deixava perceber como eram aqueles lugares antes de terem sido assolados pela destruição.

Fiquei com a impressão que a devastação foi causada por guerras. Estamos habituados a medir a cretinice das guerras pelas vidas que consomem. A devastação do património é menos notada. Sobram imagens pungentes de edifícios derrubados, da putrefacção dos lugares atingidos pela sórdida luva belicista. Como se o mapa se redesenhasse e os lugares mudassem de lugar. E tudo o que emoldurava o que existira tivesse caído no alçapão do esquecimento. A arqueologia resgata o passado obnubilado pela estupidez ou pela mera ignorância humana. Os arqueólogos trazem os caóticos fragmentos do passado até ao conhecimento de quem vive no presente. Perpetuam a história que a demência dos antepassados entregou nos braços da destruição. Ao revelarem os vestígios remotos de um passado comum, os arqueólogos são, ao mesmo tempo, de uma generosidade singular e juízes impiedosos. Entregam a generosidade a favor dos seus contemporâneos: quem nos traz conhecimento merece gratidão. E sentam no banco dos réus os antepassados que não souberam, ou não quiseram, perpetuar as suas marcas para o futuro.

Se houvesse a sensibilidade de agora para preservar os vestígios dos antepassados, porventura não havia arqueologia. Chama-se evolução da espécie. No futuro longínquo, haverá arqueólogos que resgatem o que somos e fomos agora? Contra o habitual pessimismo antropológico, fica esta interrogação.

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