8.2.10

A anormalidade da normalidade


Fechava a porta do frigorífico. À esquerda, a televisão ligada para ninguém. Desviei o olhar enquanto a colher levava à boca pedaços de iogurte. Passava um talk show produzido nos Estados Unidos – soube depois, um dos mais famosos programas do género. Fiquei ali dez minutos.

Nesse espaço de tempo, pela cadeira do convidado para a entrevista passaram duas senhoras, duas anónimas senhoras. Vieram contar como as suas vidas tinha sido destroçadas pela ignomínia de quem (um pai; um marido) lhes devia afeição. Perante o olhar ávido da audiência, entre olhares estupefactos, olhares vertendo comiseração e esgares enojados. Ninguém arredava pé. Aliás, aquele público – e os milhões de telespectadores que assistem à distância – saciavam-se nas desgraças alheias. Era como se as grotescas revelações trazidas pelas duas mulheres porventura desprovidas de auto-estima (senão, prestar-se-iam ao lamentável papel?) fossem uma injecção de adrenalina em cada indivíduo sentado na plateia.

Desconfio que entre aquele público havia quem intimamente mostrasse comprazimento pelas tortuosas existências dissecadas com mestria pela entrevistadora (acolitada por um famoso psicólogo, que servia ora de tradutor das vivências relatadas). Pois era-lhes dado a saber que há gente com vidas mais sombrias, mais desinteressantes, mais pungentes. A propensão para ser voyeur dos tremendos infortúnios alheios é um exercício terapêutico, uma exegese interior de onde pontificam, por fim, agradáveis impressões sobre a própria existência. Haveria por ali muitas pessoas (e, entre os espectadores à distância, muitos mais) que se voluntariam no papel de apiedadas testemunhas dos devastadores abalos telúricos que arruinaram os outros. Só para apaziguar as pessoais dores que os consomem pelas entranhas.

Se calhar era mais fácil interrogar as vítimas que aceitam ampliar o seu papel através da exposição mediática das desventuras. Como se não bastasse a dor imensa que as consome por dentro, expõem-se aos olhares indiscretos de um exército de desconhecidos. Talvez aquelas mulheres estivessem com os azimutes desorientados. E talvez a partilha das misérias pessoais com uma numerosa audiência seja como dividir as dores por todos os desconhecidos que se saciam ao saberem dos inconcebíveis padecimentos. Uma doentia reciprocidade: o apaziguamento do sofrimento demorado (será que aquelas mulheres esperavam sair do programa aliviadas do seu sofrimento?); e a consciência da vida pelo menos tão "normal" diante da tortuosa existência testemunhada.

Mais sórdido do que os terríveis acidentes de percurso desnudados por gente desvalida é existir uma audiência que se enfarta com as adversidades dos outros. É nesta altura que as coordenadas se invertem. A anormalidade é entronizada pelas câmaras que filmam planos detalhados das rugas das mulheres vitimadas, sob a lupa das perguntas que apertam a malha aos pormenores mais torpes. A maior anormalidade, porém, é a dos apóstolos da normalidade que sublinham a anormalidade dos outros. A maior das anormalidades é haver gente que se considera "normal" que ensaia a purificação da normalidade delimitando o território em relação às aberrações que desfilam num cortejo ignóbil.

É que já nem interessa a perplexidade ultrapassada – que haja quem perfidamente se apraza com as desgraças reveladas com o requinte de malvadez de quem aceita virar a vida do avesso à vista de toda a gente. Por mais que o olhar disfarçasse comiseração, ou por mais que se quisessem convencer que se impõe a denúncia de abjecções que muitos olhares preferem silenciar, não conseguiam esconder a maior das aleivosias. À noite, quando a cabeça já repousasse sobre a almofada, felizes por a infamante calamidade não os ter puxado da roleta da sorte (ou do azar).

Estes é que são os maiores anormais: os que filtram a sua presumida normalidade pela decantação da anormalidade dos outros.

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