14.1.10

Pescadinha de rabo na boca



O "simples cidadão" João Salgueiro foi ao beija-mão presidencial. De lá saiu – como diria uma qualquer socialista boca amestrada – blasfemando: num arrazoado pessimista, destapou negras nuvens para a economia caseira. Um exercício de prospectiva económica que terá deixado o governo e acólitos à beira da apoplexia. Ou nem tanto: que crédito merece um "simples cidadão" que vai carpir mágoas para a porta do presidente, esse ícone da oposição?

Antes de ir ao assunto, duas observações. Primeira: eu, que também sou um "simples cidadão" e, modéstia à parte, não me parece que tenha capacidades cognitivas inferiores às do Dr. Salgueiro, tinha a mesma deferência acaso quisesse ser recebido por sua excelência o presidente da centenária república? Segunda: é impressionante que estas figuras gradas do bloco central, que em alguns casos foram ministros das finanças e que não podem sacudir responsabilidades de cima dos ombros, ainda se ofereçam ao despautério de julgarem os comparsas do outro lado do bloco central. Parece o maneta a zombar do perneta. Ou a memória selectivamente curta.

Entre protestos contra a inépcia do governo (outra intolerável blasfémia), o "simples cidadão" atirou-se aos trabalhadores gananciosos que só querem muitos e generosos aumentos dos salários. Salgueiro interrogou-se, em pergunta retórica, se merecemos salários europeus se não temos produtividade europeia. Foi quando me deparei com o esplendor de uma pescadinha de rabo na boca. Segundo o raciocínio retorcido do "simples cidadão" Salgueiro, não merecemos salários europeus porque somos de uma produtividade preguiçosa. Mas este raciocínio retorcido pode ser virado às avessas. Sem querer roubar lugar aos sindicalistas encartados, pode-se inverter o sentido da retórica interrogação de Salgueiro: não seremos mais produtivos por não recebermos salários europeus?

Discutir o sexo dos anjos é de uma irritante incapacidade conclusiva. Tudo depende do lado da lente que queiramos escolher. De um lado da lente, há uma certa causalidade. Do lado contrário encontramos a causalidade revertida. E em que ficamos? Talvez fosse aconselhável evitar estes imperativos categóricos, ainda por cima proclamados com assertividade catedrática, quando alguém tenta rematar uma indiscutível conclusão depois de tropeçar num assunto escorregadio. Senão, quando pensamos que a pescadinha dobrou a espinha e conseguiu morder a cauda, alguém do lado contrário dirá, cheio de certezas, que foi a cauda que se dobrou em direcção da boca do peixe.

Trata-se de uma questão de método e de rigor (e de rigor do método). Sem desvalorizar a casta, tenho a impressão que os economistas profissionais, aqueles que apenas vêem economia à frente dos olhos, são pouco dados a estes rigores. Depois apanham com ásperas críticas de outros economistas que militam em sectores heterodoxos. É caso para dizer que se põem a jeito da crítica implacável. Deixavam de se pôr a jeito se abrissem horizontes e aprendessem um pouco de outras ciências sociais que são tão nobres como a economia. Sem esta iliteracia, Salgueiro não tinha afirmado, de maneira tão categórica, que recebemos salários pouco europeus porque é a paga que merecemos pela envergonhada produtividade.

Não se pense que comecei a renegar ideais declarados. Continuo tão liberal (ou "ultra-liberal", se o rótulo aprouver aos desavindos) como dantes. Alguns, embebidos em perplexidade, interrogam-se: como pode um ultra-liberal admitir que a produtividade seja reduzida por causa dos salários pouco europeus? No fim de contas, os liberais não estão sempre preparados para defender os interesses – parafraseando a retórica K7 comunista – "do grande capital"? Não me pronuncio pelos outros "liberais", "neo-liberais", "ultra-liberais", ou o que queiram em alternativa chamar-lhes. Só sei dizer que o abaixo-assinado liberal tem abertura intelectual para admitir que o raciocínio do "simples cidadão" Salgueiro é de uma miopia castradora.

Ao Dr. Salgueiro: recomenda-se que deixe a alegoria da pescadinha a morder a sua própria cauda e dirija o olhar para a fábula do burro e da cenoura (sem ofensas para ninguém). Talvez então perceba que o seu imperativo categórico é de uma miopia sem quartel.

Sem comentários: