27.1.10

(Os novos) Vendedores de banha da cobra



Uma das maravilhas da modernidade: as estratégias agressivas de marketing. Os especialistas tratam de nos convencer que esta agressividade é saudável. Pode ser, quando os papalvos caem no engodo (ia escrever "conto do vigário", mas achei excessivo) e a empresa que contratou o marketing agressivo engrossa a conta bancária. Para os papalvos por genético defeito, ou para os que acabam derrotados pelo cansaço, a agressividade é tão agressiva como ensina o dicionário.

Já recebi um telefonema (com número anónimo) que tinha, do lado de lá, uma voz simpática e radiante a anunciar que fui o "feliz contemplado" com uma semana de férias numa estância na costa andaluza, com tudo pago, tudo. Para começo de conversa, intriga-me o alarido da voz desconhecida: não me conhece de lado nenhum e exibe um contentamento transbordante por um prémio que eu, tão desconhecido como ele era para mim, ganhei. Dou trela. Talvez por comiseração. As vozes anónimas dos call centre ganham à comissão. Os tais da geração "quinhentos euros", da eterna dependência do recibo verde e da espada da insegurança no trabalho a pender, ameaçadora.

Começo por não perceber como fui "agraciado" num sorteio quando nem sequer meti os papéis da candidatura. É a primeira reacção quando dão a "excelente notícia" de ter sido "feliz contemplado". A história começa torta. Entro no jogo com uma perna atrás. Desconfio da condição de "feliz contemplado". Eu nunca tive sorte ao jogo! A pessoa do outro lado da linha explica-me, paciente, que fui escolhido na tômbola por ter respondido, em tempos, a um inquérito sobre hábitos de consumo. Não me recordo do inquérito. Mas dou de barato: às vezes a memória ressente-se, ela que é cada vez mais selectiva.

A voz desembainha a cassete. Estas vozes estão treinadas, muito bem treinadas, pelos modernos gurus do marketing agressivo. A maneira como colocam a voz, as frases que se demoram longos minutos, como se tudo fosse feito para anestesiar o potencial cliente. O discurso sai mecânico, com ênfase nas palavras que despertam os sentidos no outro lado do telefone. "Prémio" é a palavra mais repetida.

Quando, por fim, a cassete foi toda desbobinada, descubro que ainda sobram uns detalhes por revelar – uns muito importantes detalhes. A páginas tantas, sei que posso escolher, na data que for conveniente e entre uma imensidão de descaracterizadas estâncias de férias na costa andaluza, uma semana "totalmente gratuita" para quatro – quatro! – pessoas. E depois a voz, inebriada com a generosidade do prémio ali à mão de semear, enfatiza três vezes seguidas: "com tudo pago. Com tudo pago. Com tudo pago!"

Eu juro que não sou desconfiado. Metem-me espécie os campeões das desconfianças (aqueles que desconfiam da própria sombra). Quem tanto desconfia não merece um pingo de confiança. Mas não evito um lugar-comum: quando a esmola é muita, o pobre desconfia. É quando se invertem os papéis. Começo a disparar perguntas. De cada vez que a resposta não é convincente, repito a pergunta. Do lado de lá, começo a notar alguma exasperação na voz que envia as respostas às perguntas incómodas – é como se conseguisse ver, através do telefone, o suar a escorrer pelo rosto do homem. Quando me informa que devo ir a uma determinada morada para levantar o prémio, faz-se luz: é uma empresa de time sharing.

Lembro-me da primeira e única vez que fui pescado em plena rua (na Rua Augusta) por uma deveras simpática menina que suplicou por "quinze minutos da minha atenção". Como a companhia era agradável (nessa altura era solteiro e, talvez, pior rapaz), fiz-lhe a vontade. Só consegui sair uma hora depois. Vacinado. Para nunca ser cliente de time sharing. Lembro aquela entediante experiência (e até a sensual menina perdera os seus encantos) para terminar a conversa telefónica. Declino o prémio. Perante a voz atónita, ofendida até, que do outro lado não compreende como tenho o atrevimento de abdicar (um prémio não se recusa). É quando a agressividade se contagia do marketing para a voz do seu intérprete. Mal-educadamente, desligo o telefone.

Ficaram sequelas. Deixei de atender chamadas telefónicas anónimas.

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