31.12.10

Palavras chacais

In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZZZOHaLfJ1i6zJqX7TmUy2KLxpxJ8uJyNlBbGJxSmmlNk46L_IJKgQSKWW5Y-OhY8RW-hkpVmfVCYck98wMBXNWsiRk8bhE61l0ytusjFrYNte6VDNpINbF5tgWObreq8YTDVmA/s1600/palavras11.jpg
(...) Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar (...).
Mário de Cesariny, “You are welcome to Elsinore”, in Pena Capital
Um intenso paradoxo, as palavras. Enfeitadas pelas pétalas do encantamento, ungidas pelos dedos acetinados com a cor dos afectos. Ora as mesmas palavras que são ditas e despidas de significado, como se fossem o ar que existe num espaço selado pelo hermetismo das coisas. Palavras que se dizem e depois se desdizem como terramotos que tudo destroem na voracidade dos instantes. Mastins furiosos a morder nas canelas, arrancando os ossos pela raiz. Titubeantes por vezes. Outras vezes, quando a coragem assoma num lampejo, implacáveis. Dolorosas.
Essas palavras são a antítese de preces. São sentenças que deixam um lacre definitivo. Entram na carne como metal fundente, numa comoção insuportável. Dizemo-las com um impressionante sabor agridoce. Sabemo-las sofridas e, contudo, sabemos que desatam um sofrimento maior em quem as ouve. Em vez do silêncio, do silêncio que se impunha, as palavras são punhais que esquartejam bem fundo, até às entranhas. E nem os erros aprendidos parecem ser lição alguma. Tudo funciona ao contrário: em vez da economia das palavras, do silêncio depurador, atropelam-se as palavras pródigas que não deviam ser ditas.
Essas palavras que dão voltas e voltas, metidas num remoinho, enquanto o sono espera. Ou as que se esmagam contra o peito quando o sono se interrompe num sobressalto. Ou apenas quando irrompem do nada, a meio de coisa alguma, e ficam com uma perenidade que oxalá o não fosse. Palavras desastradas, vomitadas pelos instintos, fugidas à decantação que era imperativa. Uma enxurrada caótica, como se viessem atamancadas para cima de uma tela onde se deitam à medida que se soltam da boca enraivecida, como chacais esfomeados. Palavras cheias de dor que compõem um quadro enegrecido, as pinceladas desvairadas a quererem saltar dos limites da tela. Como se quisessem atingir os limites habitados por outros.
São palavras calhaus, atiradas sem comiseração numa lapidação em curso. Palavras que magoam, tenham ou não a intenção de magoar. Uma vez ditas, não há perdões que as desdigam. Vagueiam nas carruagens da memória. Demoram-se nos seus sofás como doença teimosa que resiste às medicinas que aplicam derrotadas curas. Palavras que são uma traição assassina. Lâminas aguçadas que entram na carne, sangrando-a com abundância. Os dizeurs dessas palavras são como chacais que vagueiam na planície em demanda das carcaças de animais perecidos, ora consumidos pela doença, ora atacados por uma matilha de leoas devoradoras. Ou são as suas próprias leoas esfaimadas, que cercam o animal moribundo e desferem as dentadas fatais que seccionam a carótida.
E, todavia, o que somos no silêncio das palavras? A venda que as silencia é uma imperturbável censura que aplaca a personalidade que rodopia, febril, nos contrafortes da existência. Eis o maior dos paradoxos:
(...) Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever de falar.
Mário de Cesariny, “You are welcome to Elsinore”, in Pena Capital

30.12.10

É assim a língua inglesa: não tergiversa


In http://www.hahastop.com/pictures/Pain_In_The_Butt.jpg
Aparece-nos um indivíduo de presença desagradável. Abre a boca e solta-se-nos o tédio. Daqueles indivíduos com discurso oco, voz monocórdica, que tresandam a bafio. Em tudo o que são – nas palavras, na pose, na maneira de ser – desatam uma sucessão de bocejos que se articulam, ora reprimidos pelos lábios que se cerram, ora com o atrevimento da boca bem aberta a mostrar os dentes todos. Na língua materna chamamos-lhe “chato”. Os ingleses não poupam nas palavras. Preferem empregar uma expressão composta por quatro termos: “pain in the ass”.
Esta expressão idiomática tem que se lhe diga. Das duas, uma: ou foi inventada por um homossexual, ou por uma senhora literata com hábitos sexuais a que os conservadores católicos chamariam promíscuos. Vou excluir a primeira hipótese. Os homossexuais sentem prazer com o acto. E, a menos que dor se confunda com prazer (e caímos no masoquismo), entende-se como é enfática a expressão vulgarizada na língua inglesa.
Os que nós tratamos por chatos são uma pedra no sapato (versão legível aos olhos das criancinhas). Ou legítimos instrumentos de uma empalação conjecturada (em semântica curta e grossa, com bolinha vermelha no canto superior esquerdo do ecrã). São indigestos. Quem não foge deles a sete pés? Por isso é que não acredito que “pain in the ass” foi popularizado por homossexuais. E como as senhoras literatas eram uma raridade à data em que estas expressões idiomáticas ganharam visibilidade, só me ocorre concluir que ela foi uma invenção de gente homofóbica: os chatos no mesmo censurado planalto que os gays. Os homossexuais e as senhoras entregues a semelhantes deleites escusam-se a empregar a expressão. Para eles e para elas é um eufemismo que traduz o oposto do sentido popularizado. Pode dar-se o caso (interpretação alternativa) de os povos que falam inglês e que usam e abusam da expressão terem assuntos mal resolvidos com o seu passado.
Outra expressão idiomática com o cunho pragmático dos filólogos do inglês é “best man” – a tradução de “padrinho”. Usa-se para os padrinhos de casamento e de baptismo. Que saiba, nos países onde a língua nativa é o inglês não se utiliza esta expressão naqueles casos em que um medíocre soergue a cabeça mercê do apadrinhamento de gente certa no lugar certo. O que por cá é conhecido como “factor C” (de cunha).
À etimologia da expressão: traduzindo à letra, o padrinho é o “melhor homem”, ou, talvez mais acertadamente, o “homem ideal” para ser a testemunha mais solene de um matrimónio ou de um baptismo. Quando escolhemos um padrinho, a selecção é feita a dedo. Não é o primeiro que vem à ideia, é aquele que julgamos ter as melhores aptidões para patrocinar o momento solene. Os da língua inglesa é que a sabem toda: em vez de se esconderem numa palavra que é a tenaz da ideia que se quer mostrar, escancaram em duas palavras, com toda a eloquência, ao que vão. Afinal, o que é um padrinho? É o melhor homem. O “best man”.
Só que os idiomas contêm as suas próprias, inadvertidas ratoeiras. Não sei se será cómodo para um noivo ver a futura consorte apadrinhada por quem quer que seja. Pois se é esse indivíduo o “best man”, é ao mesmo tempo o desconfortável atestado de que o noivo o não é. E que noiva troca cavalo por burro? Há pior maneira de começar um matrimónio?

29.12.10

Sopas de cavalo cansado


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Quando eras pequeno metiam-te pela boca abaixo, em doses diárias, sopas de cavalo cansado. Era coisa cheia de nutrientes – diziam, com alguma boçalidade tartamudeada, os teus progenitores. Não eras o único. Na escola havia uns quantos que também deixavam um rasto de álcool à sua passagem. Os professores, quase todos, eram de idêntica igualha. O director da escola sentenciava, ao ser importunado por um punhado de colegas que se indignavam com tão extemporâneo sacerdócio de álcool: “já dizia Salazar que o vinho dá de comer a um milhão de portugueses”.
Os teus progenitores não o faziam por mal. Eles também foram “educados” (por assim dizer) nesse hábito desde tenra idade. À falta de visão das coisas e de instrução escolar, copiaram os padrões “educativos” que tinham sido os dos seus pais. E se havia um desmancha-prazeres que advertia para os males da habituação ao vinho por gente tão nova, os teus progenitores deixavam a enxada no campo e, em barda com o resto dos camponeses, insultavam o inteligente que tudo o que queira era semear a confusão.
Não admira que não tenhas ido longe nos estudos. Os progenitores também deixaram cedo os bancos da escola, que a força dos braços tinha serventia no campo e ao que se aprendia na escola não se via tamanha utilidade. O remédio para repor as forças exangues numa longa passada jornada nos campos era acordar com umas sopas de cavalo cansado e com outras recolher à cama. Pois se as bestas que ajudavam a lavrar os campos eram nutridas com essas sopas, elas teriam o mesmo efeito nas gentes. A começar pela gente ainda de bueiros.
E não admira que não tenhas ido longe na escola: o vinho emudecia as capacidades de estudo. Há por aí uns cientistas malucos que juram a pés juntos que álcool a rodos contamina os neurónios, ou lá o que isso é. Parece que as gentes que enfrascam carradas de matéria etílica perdem capacidades de intelecto. Não é só o fígado que se ressente quando se entrega nos braços de cirroses crónicas. E se é verdade que os amantes do vinho e de outros álcoois se estupidificam por assassínio de neurónios, está encontrada a explicação para o teu precoce abandono escolar. Não se terá perdido grande espingarda, a crer nas dificuldades por que passaste na aprendizagem.
Hoje, mal sabes ler e escrever. Arrastas a tua proficiência pelas tascas da aldeia, na baderna, em zaragatas com os costumeiros parceiros com quem desatas à estalada quando os vapores etílicos tomam conta da lucidez. Quando chegas a casa já a noite é tardia, implicas com a consorte e com a numerosa prole que já dormia o sono dos justos. A tua fúria endemoninhada, alimentada pelos numerosos copos de três do tinto carrascão, descarrega-se nos entes queridos (como se por acaso tivesses entes que te são queridos), tal como antes fora descarregada nos parceiros da baderna que contigo militam na desordem.
Dizem que foi por causa das sopas de cavalo cansado que embuchaste desde novo. Dizem que a têmpera de uma pessoa fica alterada, o vinho a fermentar a boçalidade completa que há-de vir à superfície mal a idade adulta espreita à esquina da adolescência. O que nunca alguém te explicou é como dão sopas de cavalo cansado a crianças ainda de bueiros. Pode lá um infante em tenra idade andar cansado como um cavalo. E o doping dos desportistas medalhados é de outras andanças, não de sopas de cavalo cansado.

28.12.10

“Eleições críticas”? (Da fina análise política)


In http://aspirinab.com/ficheiros/palacio-belem-4.jpg
O meu colega André Freire, que é membro da comissão política do candidato Alegre, estendia ontem no Público um elaborado raciocínio sobre a importância das próximas eleições presidenciais. O contraponto era feito entre o candidato que ele apoia e o que vai ganhar, o actual inquilino do palácio.
As eleições serão críticas: primeiro, porque Cavaco não sabe exercer o papel de moderador (e ainda mais porque Freire já dá por adquirido que o PSD vai para o governo sem demora – faltará apenas consumar o funeral do já cadavérico primeiro-ministro); e, segundo, porque Cavaco é muito sensível aos interesses do grande capital que quer desmantelar o que ainda sobra do “Estado social”. Pelo meio, assegura a habitual superioridade moral das esquerdas sobre “a direita” e a inevitabilidade do “Estado social” – o único sistema que protege os desvalidos contra a soberba do grande capital.
Começo por admitir que é um prazer ler André Freire. Se algum dia nos encontrarmos – num congresso, à mesa de um restaurante – haveremos ao menos de concordar na discordância. Mas aposto que a discussão seria intelectualmente estimulante. Contudo, incomoda-me o desfile de imperativos categóricos. Talvez me meta impressão porque tenho andado numa peregrinação interior que faz levantar muitas interrogações para as quais não sei encontrar respostas categóricas. Cada interrogação leva a mais interrogações que permanecem em aberto. Daí que os imperativos categóricos, venham de onde vierem, são sal em cima de uma ferida por cicatrizar.
Talvez Freire, colegas e discípulos façam uma interpretação dos tempos actuais que fermentam conclusões a seu ver indesmentíveis. A crise terá sido a sua tábua de salvação: lá se põem em bicos de pés e reivindicam razão a destempo, apontando o dedo aos excessos do capitalismo e à desregulação dos mercados. O problema está nas conclusões tão lapidares. Não haverá interrogações escondidas que fariam André Freire & companhia moderar os imperativos categóricos?
Estas eleições, serão assim tão “críticas”? Ora, quando se alega o estatuto “crítico” de algo, é como se um doente estivesse com dores excruciantes que reclamam uma ida urgente ao hospital. É onde desalinho de Freire. Estas eleições são uma inutilidade. Nem vale a pena recordar o papel do presidente da república, pouco mais do que insignificante. Pegando num argumento de André Freire, a história do primeiro mandato de Cavaco está aí para o confirmar: a condescendência com o cortejo de disparates dos governos PS. (Apetece fazer uma pergunta que nos levaria pela história contrafactual: se houvesse um governo PSD tão desastrado, seria um presidente socialista tão complacente como o foi Cavaco?)
A segunda discordância vem das opostas filiações ideológicas. Como sou liberal (sem ser capitalista: não sou abastado, nem accionista de empresas), entre as interrogações plangentes surge à cabeça esta: o “Estado social” não é o coveiro que nos empurra para o fundo da fossa (leia-se, da crise)? Com outra agravante: um liberal que se preze não vota em Cavaco, que é um keynesiano dos quatro costados. Nem lhe reconhece qualidades para destruir o que ainda muito sobra do mal-afortunado “Estado social”. O que arruína a argumentação de Freire. Nem Cavaco é um bicho papão do “Estado social”, nem os seus poderes consentem que o seja mesmo que o quisesse ser.
Fiquei sem perceber se o Freire que escreveu ontem no Público era o Freire (excelente) politólogo, ou o Freire envergando a fatiota de apoiante do candidato Alegre. Parece-me que o segundo Freire compromete o primeiro. 

27.12.10

Generosidade, ou apenas a caverna da covardia?


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Tinha-o à sua mercê. Podia, enfim, usar as suas mãos como o algoz implacável que esperara anos a fio pelo instante da vingança. E como a vingança era merecida. O indivíduo andara uma fieira inteira do tempo a importuná-lo. Tomara entre mãos dois dos piores defeitos depostos numa criatura: deslealdade e ingratidão.
As relações cósmicas do universo, a que alguns chamam destino, compuseram-se de tal arte que o indivíduo viera parar às suas mãos. Ó justiça divina, se é que existes, não podias ser a prova maior de que a tua entidade tutelar é pródiga em praticar justiça entre as linhas tortas de uma folha encardida. Ali estava, o destino do indivíduo na dependência do seu exclusivo juízo. De repente, deliciara-se com o privilégio que lhe fora dado. Mas sobretudo com a apoplexia que se teria abatido sobre o indivíduo ao saber que ele podia ser o seu algoz.
O que faria? Se tivesse que decidir ao sabor da espontaneidade, seria implacável. As pagas pelas tormentas que o indivíduo lhe causara, com uma gratuitidade insultuosa. Mas não tinha que decidir naquele instante. Podia obliterar a espontaneidade e sacudir a espuma ácida que medrava entre os instintos mais óbvios. Uns dias para decantar o pensamento. Queria, por cima de qualquer outra coisa, ser justo. Evitar um sórdido ajuste de contas. E até o podia fazer sem que ressoasse um laivo de castigo salomónico.
Os dias que sobravam, podia-os consumir na sua própria decantação. Os dias passaram e na hora do acerto de contas, quando as suas mãos o tinham ali à mercê, desprotegido e com aquele ar falsamente cândido a clamar por piedade, as mãos ficaram inertes. Podiam apertar-lhe a jugular até o sentir inerte, a esfriar nas suas mãos. Mas o que houve foi uma paradoxal generosidade. Tudo se compôs a favor do indivíduo que andara uma fieira inteira do tempo a transitar na deslealdade e na ingratidão, deixando um rasto de importunação. Tudo se passara como se o indivíduo fosse um desconhecido.
Ao fim do dia, ao repousar a cabeça no travesseiro, estava contente consigo. Um acto de elevação só ao alcance de uns poucos. Dos eleitos – repetia em auto comprazimento. Teve um sono dos justos, como não lhe era ofertado há uma enormidade de tempo. Na manhã seguinte acordou sobressaltado. O acto de generosidade parecia ininteligível. Na véspera, ao deitar, convencera-se que vingara entre os pródigos na complacência diante dos que se entregam às mãos dos julgadores. Agora não tinha certeza. Interrogava-se: a generosidade não era uma farsa? O simulacro de bondade, apenas um biombo que escondia covardia. Não houvera coragem de descerrar a espada que o momento merecia. Só uma explicação para a covardia: queria refrear o desassossego de outrora. Não era sua intenção que a convidativa vingança afivelasse outro sobressalto – o seu interior sobressalto. De que servia o castigo implacável, remediava os sobressaltos de outrora?
Para o fim ficava a derradeira angústia. Às vezes, sintomas confundem-se com terapêuticas. Quando julgamos esposar uma cura – condoía-se com os seus botões – estamos imersos num sintoma. A patologia ainda a remoer-se nas entranhas. 

24.12.10

As renas coalharam o natal



In http://farm4.static.flickr.com/3617/3387505575_f5977d6a03.jpg
Mote: “Capitalism kills love”, enternecedor anúncio no muro de Serralves
E se as renas tivessem vontade própria? E se o natal fosse mesmo como vos é contado, ó criancinhas, e as prendas por que anseiam viessem transportadas por via aérea em supersónicos trenós movidos a energia de rena? E se, ó inditoso cenário, o chefe das renas tivesse tomado conhecimento do slogan artisticamente afixado, com luzes de néon a condizer, no muro de Serralves? E se, para compor o ramalhete catastrófico, inspiradas por um cataclismo marxista, as renas recusassem voar no ano da graça de 2010? Que seria feito do natal, ó criancinhas?
Imaginem: as renas resolutas numa greve de zelo que as prendia ao conforto dos estábulos. Podiam os pais natais despejar as resmas de cartas com os vossos pedidos que as indiferentes renas, possuídas pelo tal marxismo arcano, olhariam para o lado com desdém. E perguntam, criancinhas, o que é isso do marxismo?
O chefe da matilha, batendo o pé com argúcia, reivindicou luxuosas condições de trabalho. Vestuário térmico, que isto de voar quase na estratosfera é penoso, as temperaturas para além do glacial só suportáveis pelo aquecimento dos músculos voadores. E reeducação dos pais natais, seres que só na aparência são dóceis anciãos, que debaixo do verniz se aloja a boçalidade de quem maltrata animais. Doravante seriam proibidos os chicotes que açoitam os bichos quando os atrasos ameaçam corromper o natal das criancinhas.
As renas exigiam tratamento de excepção nos restantes dias do ano, como se fossem a preparação para a árdua função que as leva a sobrevoar os céus das quatro partidas do mundo na noite de véspera de natal. Ração gourmet, estábulos aquecidos, ginásio de luxo para abaterem adiposidades da alimentação supimpa. Massagens aplicadas por veterinárias escolhidas de catálogo (para as renas macho) e por veterinários retirados a uma escola de modelos (para as renas fêmea) – ou consoante os gostos, no caso das renas homossexuais (manda o politicamente correcto não fazer a discriminação).
Queriam soltura nocturna três vezes por semana, que a vida monástica era a deprimente antítese dos incentivos para os voos natalícios. Também queriam ter vida social. Queriam pôr a mão no amor. Adiado, até ao ano da graça de 2010, pelo capitalismo absorvente. Ou estes pedidos eram atendidos, ou na história dos tempos haveria um salto entre o natal de 2009 e o de 2011.
O sindicato das renas, sabendo da forte posição negocial, foi inflexível. Do lado de lá, os loquazes representantes do capitalismo estavam abismados com a ousadia. Exasperados com a afronta dos bichos, esticaram a corda. Não acreditavam que as renas corressem o risco de boicotar o natal às criancinhas. E tanto esticaram a corda que ela se rompeu. Sem acordo. As renas continuavam a ter as condições a que estavam habituadas. Os capatazes do capitalismo que fenece quando o cutelo ameaça decepar os lucros habituais foram imprudentes. Assim como assim, a ausência do natal consumista ia entesar os seus bolsos com o vazio do vil metal.
Mas quem sofreu foram as criancinhas, que entraram pela madrugada de vinte e cinco de Dezembro de nariz voltado aos céus. Ainda acreditavam que os usos ordenassem a harmonia. Quando acordaram – ainda se despedia a madrugada dos céus tomados pela escuridão – entristecidos, caíram em si. As malditas renas tinham coalhado o natal. Ao menos que o de 2011 estivesse prometido – foi a centelha que se acendeu no recôndito da sua tristeza.

23.12.10

Intelectualizar a bola


In http://veracidade.net.br/images/stories/arquivos_site/bola3dsk8.png
Está certo que hoje tudo é alvo de tratamento científico. Por que haveria o futebol de escapar à tendência? Há teses de mestrado e de doutoramento que atiram a sociologia ou a psicologia do futebol para os braços dos júris académicos. E há analistas que intelectualizam o futebol na imprensa, como se o desporto fosse um exercício esotérico. Eles decifram-no, pois conseguem ver num jogo de futebol coisas que só aos seus olhos são dadas a observar.
Leio com prazer estes intelectuais da bola. Estou sempre à espera da citação de um escritor que tenha discorrido sobre futebol para me alambazar com a erudição destes intelectuais. No fundo, eles educam as massas, mostram-lhes que devem possuir alguma cultura geral. Gostar do futebol por gostar do futebol não enche as medidas de uma criatura que preze o seu intelecto. São educadores das massas, os intelectuais da bola.
Eles querem mudar as lentes usadas pelo povo comezinho quando vai a um estádio em exaltação clubista. Não interessa apenas ver a bola atamancada nos pés de vinte e dois jogadores, ou depurar os erros grotescos da equipa de arbitragem, irrelevante a cegueira clubista. Para estes intelectuais, um jogo de futebol é uma paleta multidimensional. Tem um pano de fundo – as estratégias de gestão dos dirigentes; um general que comanda as tropas, alinhavando a táctica que, para estes intelectuais, ganha aos pontos a um jogo de xadrez em complexidade; e os intérpretes atirados para o relvado, que, ao contrário do que se faz constar, não são gente com reduzido quociente intelectual.
Volta e meia, lá aterram nos jornais prosas exaltadas que descobrem o lado oculto de um jogo de futebol. É o treinador visionário, sempre três passos à frente da concorrência, que comanda as tropas quando elas cercam o adversário, deixando-o rendido à superioridade táctica. Ai, a táctica, como ela é enaltecida, quem sabe merecedora de nova modalidade de prémio Nobel. E por que não? É um desporto que move as massas. Diriam, em abono da sua dama, que falta reconhecer o papel nobre da bola para a sociedade atingir os píncaros da democratização. Não lhes chega o tempo de antena, absurdamente desajustado (digo eu), ocupado na comunicação social e entre os políticos que mandam.
Fico embevecido com a lírica narrativa emprestada a um jogo de futebol que ficou na retina de um intelectual do género. Enganados os que dissessem que naquelas narrativas pouco falta para o jogo de futebol ser sublimado ao estatuto de obra de arte; são mesmo obras de arte, a quintessência das maravilhas fora do alcance do comum dos mortais. A plasticidade dos movimentos de um jogador é descrita com exaltação poética. O arrebatamento com que a táctica é anatomizada causa inveja nos gurus da gestão. Quando um dirigente é louvado, o intelectual da bola ensaiando a sua hagiografia, é-nos dito que os políticos da nação deviam aprender com as aptidões estratégicas daquele visionário.
Advertia no início: hoje tudo e mais alguma coisa é matéria da ciência. Qual o mal de meter o futebol no bornal da intelectualização? Pode acontecer que mais de noventa por cento do público do futebol não perceba patavina das mui intelectuais análises dos catedráticos que discorrem mui intelectualmente sobre futebol nas páginas dos jornais. E o que é que isso interessa, se tantas vezes acontece que os intelectuais falam para o seu umbigo? Deixemo-los com o seu particular onanismo.

22.12.10

Maltratado Inverno


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Os caprichos outonais, aposto, puseram em muita gente um ódio antecipado ao Inverno que ontem entrou no calendário. Já não recordo Outono tão rigoroso. De tanta chuva. De vir agasalhado pelo frio e pela neve que nos últimos anos andaram arredios até da invernia. Não estranha que o nascente Inverno seja amaldiçoado antes do tempo por todos aqueles (e são muitos) que passam pelas estações sombrias (Outono e Inverno) com um esgar de sacrifício.
As pessoas discorrem sobre as estações e o Inverno ganha a palma de patinho feio. Ou porque são friorentas e se congelam com o frio que os dias ensolarados, na sua covardia, espalham. Ou porque detestam a chuva e o vento que despenteiam a boa disposição dos que apenas a arreganham se as nuvens não obscurecerem a divindade solar. Nos mais velhos, a invernia traz achaques. Pode até ser sinónimo do último Inverno, se as doenças que com ele vêm se tornarem tão crónicas que não já não têm cura.
Talvez seja dos quadros mentais, talvez seja por estas terras serem tisnadas por Verões tórridos, a marca digital do epíteto mediterrânico que se nos atrela: o Inverno está próximo de um estado de ódio. É a estação vítima das incompreensões. Dizem-me que há uma aridez mórbida no Inverno. As árvores despidas dos despojos das folhas entretanto caducas. O restolho das folhas que enxameia as ruas corrido pela ventania implacável, sinal de desarrumação que mão alguma consegue conter. Os dias a fio sem sermos testemunhas de um esquálido raio de sol. E os dias pequenos, a noite tão longa que exaspera. As ondas do mar recorrentemente furiosas, como se o mar atravessasse demorados dias na remoção da ira para as praias colonizadas pela água excessiva. A neve que por vezes desce aos níveis próximos do zero marítimo – a mesma abundante neve que se põe em sucessivas camadas nas terras altas. E a chuva que, na sua obstinação quase diária, macera a existência.
Estamos mal habituados. Comparem o Inverno que é nosso com o rigor da invernia em latitudes mais nortenhas. A temperada digressão entre fins de Dezembro e fins de Março é um esboço de Inverno. Os que se queixam dos rigores invernais são uns lingrinhas. Haviam de experimentar os vinte graus negativos do interior do Canadá. Haviam de experimentar os ventos glaciais que transformam sete graus negativos num frio que corta as extremidades do corpo que ousem espreitar além da roupa que as protege. Temos é um Inverno faz de conta.
E, todavia, os esgares de desaprovação que andam na rua em dias de desagradável ventania, ou em dias de frio que ameaça trazer o termómetro para os graus negativos, é a imagem da gente franzina que se apoquenta com uns ares de invernia mais severa. As pessoas indispõem-se quando a invernia entra no calendário e se insinua nos corpos. Nem chegam a perceber o lado virtuoso do Inverno. A luz límpida dos gélidos dias de sol – como se o frio erroneamente apodado de glacial decantasse todas as impurezas que caldeiam a luz do sol. Ou a coreografia desalmada dos elementos em dias de tempestade, como as nuvens se revolvem nas entranhas e despejam chuva a rodos e semeiam ventos tempestuosos que tudo descompõem. Como os rios superam as margens, ou os dias repetidos de frio abaixo de zero condensam os ribeiros em gelo. Ou a neve que se assenhoreia das montanhas, resplandecendo a sua alvura quando o sol desponta sobre os contrafortes das serranias.
Como é excessivo (e por isso adorável) o Inverno! 

21.12.10

Berlusconi não gosta de lésbicas


Mais outra para o anedotário “berlusconiano” (até pela semelhança fonética, quase apetece revisitar a palavra “burlesco” e adulterá-la: passaria a ser “berlusconiano”): duas estações de televisão de que o primeiro-ministro italiano é dono censuraram um anúncio da Renault com óbvias conotações lésbicas. Podemos inferir que Berlusconi não morre de amores pela homossexualidade. Nem pela feminina. Fica-lhe bem, no que à coerência tange. Não foi a improvável personagem que há uns meses alvitrou que é preferível gostar de menininhas de tenra idade do que ser gay? Se ele apenas desdenhasse da homossexualidade masculina tinha logo em cima os mastins da igualdade. Assim ainda se salvam os móveis da coerência.
Talvez por ser personagem risível, Berlusconi é um imenso mar temático. Esta notícia desfia várias observações. Para começar, interessa dar conta da hermenêutica do anúncio publicitário. Ele é óbvio que há uns olhares insinuantes trocados entre duas mulheres (por sinal, devera apetitosas). E que a sedução se consuma com a subida ao quarto do hotel, onde se ensaia, com a nitidez que as imagens aclaram, o prolegómeno do acto sexual. O epílogo da curta narrativa publicitária devia, a meu ver, convocar a fúria dos movimentos LGBT. Então não é que uma das mulheres manieta a outra, atando-lhe as mãos à cama, só para lhe tirar à socapa a chave do insignificante automóvel?
Já não há respeito pelos sentimentos. Vá-se lá admitir que um insignificante Renault valha mais do que uma noite tórrida nos braços de uma parceira acabada de engatar. Por este prisma, Berlusconi não arrosta a acusação de homofobia. Pelo contrário, ao banir o anúncio pôs-se (decerto sem querer) ao lado dos movimentos lésbicos. E, ó ironia do destino, de braço dado com movimentos que odeiam a ideologia do consumo que nos metamorfoseia em seres empenhados ao materialismo. Dois pontos para Berlusconi.
Se teimarmos na miopia e a análise transacta estiver distorcida (porque Berlusconi só faz asneira e disso a gente bem pensante não se pode demitir), confirma-se que terá instruído os lacaios que chefiam as estações de televisão. É que a igreja, mais tarde ou mais cedo, iria zunir aos seus ouvidos. Manda a natureza dizer que os sexos diferentes é que fazem aquelas coisas indiscretamente insinuadas pela publicidade da Renault. A confirmar-se a fama de D. Juan vitaminado com os famosos comprimidos azuis muito procurados por septuagenários com hormonas de trintão, Berlusconi roía as unhas de inveja: podiam lá duas apetitosas moçoilas desperdiçarem-se assim nos braços uma da outra; mais bem empregadas seriam se passassem pelos lençóis do engatatão mor de Itália, o primeiro-ministro em pessoa.
Mas Berlusconi, ultimamente tão entretido em orgias com menininhas acabadas de sair da idade em que seria pedofilia (rezam as notícias), tão obtuso, nem sequer tenha percebido o elevado potencial libidinoso daquele anúncio. É aqui que se confirmam as curtas vistas desta direita tacanha e, mau grado os devaneios carnais, tão presa às tutelares sotainas das paróquias. Se Berlusconi fosse fino, não censurava o anúncio da Renault. E deliciava-se com o cenário, imaginando-se a terceira personagem a juntar-se ao idílio entre as duas lésbicas.

20.12.10

Outro cálice ao alto


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZ49nHSDgPIMPsr-95pJonf0RKU_Su1ipbZn2pBZFb9OdPFUScjahDBU1BMbXDfHMBcYxDUBmuXh4CfTy1bsgQ8MWQ6ib0GhTVGINnIgPSFKB4QK48O62T7UNOIXOdNvPE9iq0pg/s320/ashes.jpg
O rapaz lera no periódico: “Walkinshaw morreu aos 66 anos”. Na Austrália feneceu um súbdito inglês. O homem que dirigiu equipas em corridas de automóveis enamorara-se da Austrália em fim de vida. E não quis regressar à pátria antes do passamento.
(E o rapaz, imerso na néscia curiosidade intelectual, entaramelou a divagação com outra que se lhe meteu nos fundilhos e interrogou-se: “por que não se trata por “mátria” a terra que nos dá nacionalidade”? Assim como assim, agora que é modismo recorrente não ferir as susceptibilidades das sacerdotisas da igualdade de género, quem nos dá nacionalidade, a terra-mãe, não devia ter o merecimento de pátria. A palavra arrasta o opróbrio da ancestral dominação masculina. O corrector ortográfico de primeira apanha que instalara no computador não reconhecia “mátria”. Pediu conselho ao dicionário. Mais modernaço, devolveu em resposta: “a pátria vista pelo lado feminista”.)
Havia outra pergunta, pungente, a adejar o problemático rapaz: não devia um homem em fase terminal, sabedor da fatalidade em espera, instruir os mais chegados para ser encomendado à terra que o viu nascer? Que descaminhos teriam indisposto Walkinshaw contra a Inglaterra mãe? O rapaz, ingénuo como o são os rapazes embebidos em inane curiosidade intelectual, mergulhou na perplexidade. Ao lado, o tio, vendo-o debater-se num daqueles frequentes momentos de elucubração que o fazia ruborizar, atirou sem o olhar (a fingir desinteresse):
- precisas de ajuda?
- Estou aqui a ler uma notícia...O Walkinshaw morreu e não quis ser enterrado em Inglaterra.
- Quem era esse? (lançou, já atraído para o tema da conversa, o tio)
- Era um tipo das corridas. Mas isso não interessa. Uma pessoa não devia ser enterrada na terra que o deu ao mundo?
- Essa agora. Não posso estar zangado com a pátria e querer funeral em lugar estrangeiro?
- Mas eu vejo notícias a toda a hora e somos identificados pelo nome e pela nacionalidade. Eu acreditava que estávamos empenhados à pátria. Ser enterrado noutro lugar é indigno.
O tio julgou ser oportuno um daqueles momentos muito pedagógicos, carregado de moralidade bolorenta. Não era para aí que estava virado. Preferiu espalhar a confusão, que a toma como mais pedagógica:
- Diz-me uma coisa: o tratador da águia do teu clube, o que está incompatibilizado com o presidente, e que a imprensa tonta se apressa a transformar em notícia, o indivíduo não é espanhol?
- E daí? (interrogou, ainda mais perplexo, o desorientado rapaz)
- Daí que os corpos podem ter serventia quando são oportunas mantilhas para a soberba dos nacionalismos. Uma vez mortos, somos todos matéria inerte. Perdemos valor para os nacionalismos...
O rapaz interrompeu-o, com fúria:
- ...Ah, como estás enganado! E os heróis, como tratas os heróis das nações?
- Lenha para o orgulho fátuo dos inebriados com a fogueira sem lume que é o nacionalismo. O que valem os seus corpos, senão para romagens que exaltam a pertença que já não é deles? Vês a inutilidade de um cemitério?
Sem ponta de sangue, o rapaz ficou lívido ao escutar a revelação do tio em jeito de fim de conversa:
- Sabes? Já ordenei à tua tia: à minha morte quero que as cinzas sejam espalhadas do alto de um avião em voo transatlântico, quando estiver no equinócio entre a Europa e as Américas. As cinzas irão com o humor dos ventos. Brindas comigo?

17.12.10

Os outroras embaciados


In http://img106.imageshack.us/img106/5243/chuvakb9.jpg
Os dias predilectos. Já nem sabia quais eram. Às vezes, na monotonia dos dias sucessivamente estéreis, convencera-me que eram os dias de antanho. As refulgentes recordações que enchiam a casa de luz. Porém, de uma luz pífia. Havia naquela luz um engodo que mal se discernia, ou não fosse ela um engodo em revelação tardia. Assim acontece quando o tempo passado apenas se revela na sua projecção futura.
Parecia uma luz clara, branca, a que se infiltrava por todos os poros da casa. Não havia serventia de candeia alguma, pois até a escuridão da noite se iluminava com aquela desassombrada luz. Mas talvez a falácia viesse tingida pelos dedos da lente quebrada, a lente que tornava a luz alva aos olhos transviados. E assim se repetiam os dias da monotonia, aqueles dias em que por mais que estivesse no exterior pareciam acantonados entre as frias paredes da casa. Adulterados pela luz-falácia.
O privilégio da lucidez é porventura outro logro. Afinal, quando podemos dizer que estamos lúcidos? E isto importa, porque só quando nos achamos nos braços da fria perspicuidade é que decantamos as camadas do tempo. É quando somos juízes como os juízes devem ser, imparciais. Por vezes, a lente embacia-se quando retalha os outroras que importam. Os julgamentos atraiçoam-se na sua parcialidade invisível. Os pessoais tribunais que afiançam sentenças sobre os outroras são lugares terríveis.
O mal está nas sucessivas camadas do tempo que escondem outras tantas fuligens que tudo embaciam. É como se houvesse uma cortina de sombras sobrepostas, as sombras de diferentes matizes em recíprocas interpenetrações até tudo se tornar um indistinto caos. Os espelhos fitam-se uns nos outros, projectando imagens distorcidas. Que, contudo, se insinuam aos olhos como imagens que, num certo instante, se oferecem em cristalina cintilação, como se o momento se emoldurasse na sua perenidade.
Eu digo que os dias que perfazem os outroras, os outroras que importam e os outros rendidos ao anonimato das memórias, se fazem baços no seu ocaso. Os elos do tempo, a joalharia que colhemos em cada dia que foi nosso, são a melodia que entoa a lição de que falas: “o presente foi o futuro no passado”. Mas seria preciso que os dias estivessem agrilhoados por anéis recíprocos, como se fosse possível ter três dedos presos no mesmo anel. Ora os dias decantam-se. As diferentes camadas do tempo são isso mesmo – camadas com diferentes espessuras. O passado, o presente e o futuro deslaçados entre si.
O presente nunca é o futuro no passado. É efémero. Se dizes que todos os dias já gastos se encavalitam uns nos outros em prenúncio do futuro que o presente não consegue adivinhar, digo-te que isso não passa de uma sucessão de acasos. Admito que as resoluções de hoje adulteram o porvir. Mas o que importa se elas não são uma intencionalidade futura, se não são coreografadas com o propósito de serem arquitectas dos dias vindouros? É quando a inutilidade do passado transpira entre os poros. Os dias de antanho, embaciados pelos olhos estremunhados, tudo o que conseguem é semear um sobressalto que enxuga a claridade dos dias presentes.
Teimo: as sucessivas camadas do tempo não são contíguas. Surgem-nos deslaçadas. Mas ainda admito que a ferocidade dos dias presentes, a vontade de os sorver um de cada vez como se não houvesse amanhã qualquer, possa dissolver a lucidez. Nessa altura, a intemporalidade das sucessivas camadas do tempo (que aqui reclamo) também é um embuste.

16.12.10

“A democracia é boa quando o número dos que mandam é ímpar e inferior a três”



Fiquei com os olhos na capa do Público de ontem. Naquela fotografia que ocupava a metade cimeira da capa. Retratava os tumultos em Roma depois da enésima salvação política de Berlusconi. Os carros a arder fizeram-me interrogar: terão os seus proprietários culpa da besta que os governa? Terão culpa de haver gente ainda mais estúpida, a que não aceita as regras do jogo democrático, que os fez pagar a factura da sobrevivência de Berlusconi? Dirão alguns, como uns camaradas que no blogue Cinco Dias garatujaram uns relatos arrebatadores da desordem romana, que os meios justificam os fins.
Os olhos ficaram estáticos durante algum tempo nos carros a arder. Estou a adivinhar a argumentação dos alucinados camaradas que se excitaram com o fogo ateado a automóveis parados onde não deviam. O dono do Alfa Romeo e o dono do jipe, gente endinheirada, é de direita. Da mesma direita que teima em eleger com uma certa periodicidade o patético Berlusconi. A fogueira em que incensaram os seus automóveis é a paga justa pela grotesca escolha. Que é como quem diz por outros modos: quem os mandou serem ricos, de direita e votantes de Berlusconi? No acerto de contas com a “vontade popular” (que tem muito que se lhe diga), este foi o preço que pagaram. Talvez as companhias de seguros sejam os bodes expiatórios para os ressarcir dos danos.
Mantenho os olhos na fotografia do Público. Num pormenor significativo: enquanto os carros dos burgueses se consumiam na fogueira ateada pelos rebeldes, um pobretanas Fiat Panda jazia encostado à parede sem ser beijado pelas labaredas. Não creio que os bandos de desordeiros estivessem com vontade de fazerem as vezes de bombeiros sapadores e, num acesso de valentia e equanimidade, salvassem o modesto Fiat Panda. Assim como assim, só os pobres e remediados é que compram um automóvel tão modesto. De certeza que o dono do Fiat Panda é de esquerda e abomina o execrável Berlusconi. Não é justo que seja vítima injustiçada dos tumultos gerados pelo descontentamento por causa de mais uma sobrevivência de Berlusconi.
A fotografia do jornal imortalizou um instante. Se ela fosse tirada minutos depois, até o modesto Fiat branco estaria a ser consumido pelas chamas. Vitimando alguém que muito de certeza estaria algures a festejar os tumultos que os camaradas com um notável espírito democrático espalhavam pelo centro de Roma. Ironia do destino!
Vou pôr curto e grosso: Berlusconi é uma besta? Sim – e digo-o sem pestanejar. Dentro da heterogeneidade que é a direita, a personagem envergonha a pertença à facção. Mas os seus opositores, sobretudo estes radicais de extrema-esquerda que se acham penhores do “sentir popular”, não são gente de melhores recomendações. Ajuizar, como o fazem os inebriados camaradas do blogue Cinco Dias, que estas manifestações de rua que espalham a destruição são uma exibição de justiça popular, é revelador do que teríamos caso algum dia esta gente chegasse ao poder. A tal democracia em que o número dos que mandam é impar e inferior a três. E carradas de arbitrariedade. Também sei o que me estaria destinado caso essa improbabilidade acontecesse: o exílio. Por ser melhor do que a prisão por dissidência de ideias.

15.12.10

So what?


In http://novo-mundo.org/wp-content/uploads/luz-no-fim-do-tunel.jpg
Na iteração dos equívocos, passeias entre as fumarolas da perplexidade. Diga-se: da perplexidade com que és observado pelos que te querem bem. Não entendem. Não entendem como as tuas pernas teimam em passos que soam a repetição, como se estivesses tomado de uma toleima irremediável. Do lado de lá de ti, olhas como os outros olham para ti para tentares compreender se és um rosário de erros. Ensaias um salto para fora de ti, numa coreografia doída. Haverás um dia de conseguir. Chegarás a esse lugar improvável de onde te observas de fora de ti mesmo, como se empunhasses um espelho que reproduz a tua imagem para fora de ti. Onde estás sentado, em pose ansiosa, a aguardar que na tela passe o filme da tua existência.
Até lá, persistes num romagem cansativa. Arremetes contra as possantes ondas empurradas pela maré onde todos passam. E tu, teimoso, nas braçadas esforçadas que irrompem pela água, sempre para o lado contrário. Confrontam-te. Demonstram como estás fora de ti, em ausente racionalidade – ah, como se a racionalidade fosse critério imperativo, ubíquo. Interiorizas. Espreitas por entre a poeira sedimentada no quarto das memórias. Desta vez, ensaias um adeus perene às atravancadas recordações. As más, que são as mais convenientes de turvar, mas as boas também para não haver parcialidade. Interiorizas outra vez: enxugado o caudal vigoroso das memórias, como se conseguisses parar o rio caudaloso, libertas-te do espartilho das lições aprendidas com os equívocos de outrora.
Tudo é novo. Todas as experiências, como se nunca houvessem sido sentidas. Um dia que se renova é de uma frescura inusitada. E se te interrogam, com a perplexidade de quem se magoa com os teus passos trocados, “não aprendes nada com o passado?”, respondes que o passado é uma inutilidade. E insistes: esse passado, qualquer que seja – o das recordações que interessam resguardar bem junto do peito, ou o das recordações que a memória selectiva trata de ofuscar – não tem serventia para o tempo de que somos curadores. O tempo dos dias presentes.
Eis que chega um portanto em jeito de interrogação: afinal, o que temos a aprender com os despistes pretéritos? E outro afinal que importa: repete-se, o tempo que está deitado na poeira da memória? E então – então, por que nos perdemos em divagações inúteis, tão inúteis como a extrapolação que resgata as bissectrizes transactas e ilude o tempo presente com ilações que se julgam intemporais?
E então? Nada disso interessa. Podem os pés voltar aos mesmo lugares, tolos os pés, sem que o regresso venha enfeitado com as mesmas cambiantes de outrora. O tempo mudou, o corpo envelheceu, as pessoas que estão nesses lugares já não são as mesmas – e se são as mesmas, também mudaram. Como podemos repetir as conclusões quando tudo mudou entretanto? Há um poderoso apelo que vem das entranhas. Para consagrares o tempo vivificante, ignorares as bissectrizes tão científicas que os analistas dos outros tiram, como se acreditassem que a história é um lugar onde tudo se repete. Só que tudo é irrepetível. Por maiores que sejam as semelhanças, por mais parecidos que se montem os palcos onde, apenas na aparência, se repetem os protagonistas.
Desenganem-se os atarantados, boquiabertos apóstolos que redizem as advertências. Tudo é irrepetível.

14.12.10

Natal azedo


In http://www.agromundo.com.br/wp-content/uploads/2010/04/sugar.jpg
Vieram ladrões de um lugar remoto. Odiavam o natal. Tinham inveja da felicidade que cobria o rosto das crianças, da bonomia a que eram forçadas sob a promessa de um pai natal generoso. Gatunos impiedosos que se deliciavam a imaginar um natal azedo, os confrades todos amesendados à volta de uma ceia de natal sem doçarias, todos tristonhos.
Não havia filhoses, bolo rei, rabanadas, aletria, sonhos, mexidos. Nada. Por carência de açúcar. Os meliantes organizados em brigadas, encapuçados e munidos de armamento respeitável, espalhados pelos quatro cantos do território, atiraram-se enfurecidamente aos carregamentos de cana de açúcar que as refinarias tratariam de transformar no necessário açúcar para as iguarias doces da época. Nos mercados, stocks em ruptura. Quem primeiro tomou conhecimento da ameaça de ruptura açambarcou avantajadas doses de açúcar.
Entre os especuladores estavam anónimos, mas não agora encapuçados, membros das brigadas de desmancha prazeres da quadra natalícia. Eles lá sabiam os próximos dias, os pacotes de açúcar a rarearem nas prateleiras dos supermercados. Pela calada da noite, em camiões indiferenciados, já montados nos seus capuzes tingidos a negrume, encaminhavam-se para praias desertas. Os camiões avançavam no areal até às proximidades do mar, para onde eram arrastados os carregamentos de açúcar. Mal tocavam a insalubre água do mar, destinados à contaminação.
Numa noite, um homem errante descobriu a marosca. Arregaçou as mangas com a coragem que só é dada aos heróis e entrou na água para salvar uns míseros pacotes de açúcar. No areal, os mercenários vestidos de negro nem reagiam. Apenas soltavam sonoras gargalhadas até que o presunçoso herói descesse à terra. Ao menor contacto com o insalubre mar e o açúcar era perda irremediável. O silêncio das gargalhadas determinou o retorno à lucidez do pobre homem que se encenara herói. Os mercenários avançaram em pose ameaçadora. Tinham que o prender, não fosse o plano segredado e o natal enfim resgatado à sua adocicada, falaz essência. Para aquele abortado herói nem haveria natal.
A tarefa era temporária. Os insólitos terroristas só queriam boicotar o lado doce do natal. Não destruíram as toneladas de cana de açúcar violentamente roubadas dos navios que aportaram em Leixões e em Setúbal (três vigilantes e um moço a bordo de um navio contavam-se entre as vítimas mortais). Foram armazenadas em segredo até que o degredo do natal tivesse suplantado a bitola do calendário. Num certo dia, as brigadas de desmancha prazeres natalícios informaram por comunicado às redacções: a 7 de Janeiro seria revelado o paradeiro das toneladas de cana de açúcar. As autoridades suspeitaram de gente que faz da saúde pública fundamentalista causa de vida. Cardiologistas, nutricionistas, endocrinologistas, gurus de uma vida anemicamente saudável, todos de braço dado com os rotineiros corruptores da habitualidade dos costumes, os sacerdotes da contínua denúncia das aleivosias do capitalismo e do esplendoroso, e contudo, fútil consumismo.
Com uma vigorosa palmada das mãos mesmo junto aos ouvidos, despertei das terras oníricas. O açúcar ia faltar de verdade, ó desdita, para desgosto dos muitos em quem a água já crescia na boca só de antecipar o fartote de aletria, rabanadas, sonhos regados com aquela deliciosa calda, mexidos e o mais que viesse à mesa. E não havia malfeitores incumbidos de boicotar o adocicado lado do natal. Era o mercado que tinha falhado. Só que desta vez, nem à força o presciente Estado conseguiu corrigir a falha do mercado.
Um natal doce, só para os prevenidos. Aos demais, adocicado natal adiado por um ano.